Ana Cristina Fonseca
O filósofo negro norte americano Molefi Kete Asante é conhecido por desenvolver em suas obras o paradigma da Afrocentricidade, cuja aplicabilidade no ensino das relações étnico raciais no contexto escolar quilombola representa uma possibilidade de reposicionamento curricular da centralidade africana, bem como práticas educativas oriundas dos célebres griots como contação de histórias pretas, ou confecção de bonecas abayomi e máscaras, tudo que resgatar a grandeza, riqueza e sofisticação pluriforme da cultura africana e em suas múltiplas diásporas. Cumpre a priori recorrermos ao próprio Asante (2019, p.137) na conceituação de Afrocentricidade:
Afrocentricidade é uma estrutura de referência na qual os fenômenos são vistos da perspectiva da pessoa africana. A abordagem afrocêntrica busca em toda situação a centralidade apropriada dos africanos (ASANTE, 1987). Na educação isto significa que os professores oferecem aos alunos a oportunidade de estudar o mundo e seus povos, conceitos e histórias do ponto de vista da visão de mundo africana. Em muitas salas de aula, qualquer que seja o objeto, os brancos estão localizados na perspectiva central.
Reconhecer-se como africano em diáspora, saber do pertencimento a uma tradição que envolve reinos, deuses, mitologias, biodiversidade exuberante e onde a humanidade aflorou, todas estas facetas podem não apenas elevar a auto estima de crianças quilombolas, mas, também oportunizar uma visão de mundo construída a partir de um novo eixo paradigmático, Asante (2019, p. 137) também reflete sobre as crianças afro-americanas que veem em livros de história e narrativas literárias personagens que não lhes representa.
Pode-se visitar o texto do autor transladando a posição das crianças para o Brasil, país igualmente marcado pelo sistema escravista e onde parte da herança da escravidão se presentifica na tragédia da educação brasileira que ainda não construíra verdadeiramente um currículo e práticas que prestigiem com a mesma honra o contributo de todas as matrizes étnicas constitutivas do povo brasileiro:
Quão estrangeira a criança afro-americana deve se sentir? Deve sentir-se como uma intrusa! A pequena criança afro-americana que sentada na sala de aula é ensinada a aceitar como heróis e heroínas indivíduos que difamam os povos africanos é ativamente descentrada, deslocada e transformada em uma não pessoa, alguém cujo o objetivo na vida pode ser um dia tirar aquele “crachá de inferioridade’’ da a sua negritude. (ASANTE 2019, P. 137)
O autor também postula que o paradigma da Afrocentricidade no contexto escolar pode ensejar o reconhecimento das crianças negras como sujeitos partícipes da edificação do próprio conhecimento:
Na configuração educacional afrocêntrica, porém, professores não marginalizam as crianças afro-americanas criando nelas problemas de autoestima porque a história do seu povo raramente é contada. Para verem a si mesmos como sujeitos e não como objetos da educação – seja a área de estudo biologia, medicina, literatura ou estudos socias – os alunos afro-americanos verão a si mesmos não apenas como aqueles que buscam conhecimentos, mas como participantes integrais na construção dele. (Asante 2019, p. 141)
O autor denuncia também o quão distante está nosso ensino da demonstração do terrível drama humano da escravidão e tráfico atlântico negreiro, a barbárie civilizatória encetada pelo colonialismo e imperialismo escravistas, não é precariamente discutido apenas em escolas dos Estados Unidos, o Brasil também possui desafios a superar, apesar de possuir diretrizes curriculares especificas e acolhida no ordenamento constitucional e infraconstitucional:
Poucos professores discutem com seus alunos o significado da Passagem do Meio ou descrevem o que isto significou ou significa para os africanos. Pouca menção é feita nas salas de aula americanas sobre a brutalidade da escravidão ou sobre a celebração da liberdade dos ex-escravos. As crianças americanas têm pouca ou nenhuma compreensão sobre a natureza da captura, transporte e escravização dos africanos. (Asante 2019, p. 141)
Molefi Asante tangencia a convicção de que outra postura surgiria entre os estudantes, se soubessem da realidade da escravidão em suas verdadeiras nuances trágicas, “as salas de aula americanas deveriam repercutir o tratamento bárbaro dado aos africanos, como sua dignidade foi roubada e suas culturas destruídas.” ( Asante 2019), o autor ressalta os relatos sobre escravizados que perseguiram a liberdade como importante matéria prima da transformação “O registro das experiências dos escravos que escaparam, providencia a substância para estas unidades de aprendizagem” (Asante 2019), decerto que ensinar a transgredir conforme bell hooks teorizara perpassa avistar-se com saberes que transformam, conhecimentos que libertam, posto que, alimentam a indignação necessária ao desenvolvimento de um mundo menos desigual e injusto.
Poucos aprendem os verdadeiros horrores de ser capturado, ser enviado nu por 25 dias ao longo do oceano, de ser destruído pelo abuso e indignidades de todos os tipos e desumanizado como um burro de carga, uma coisa sem nome. Se nossos estudantes soubessem somente a verdade, se a grande escravização lhes fossem ensinadas pela perspectiva afrocêntrica e se eles soubessem toda a história sobre os eventos desde a escravidão que tem servido constantemente para deslocar os afro-americanos, seu comportamento talvez fosse diferente. (Asante 2019, p. 141,142)
No que concerne ao Brasil precisa-se conhecer a luta da resistência contra a tirania escravista e personagens como Luíza Mahin, Luiz Gama, Joaquim Nabuco, Negro Cosme e Zumbi e Dandara dos Palmares, “a identidade básica de uma pessoa é a sua autoidentidade que, em última instância, é sua identidade cultural.; sem uma identidade cultural forte, a pessoa está perdida. Crianças negras não conhecem a história do seu povo e as crianças brancas não conhecem a história.” (Asante 2019).
A identidade cultural do aluno quilombola é inafastável da tragédia do tráfico atlântico, mas também dos personagens ilustres que povoam a África e a diáspora africana, assim sendo, as relações étnico raciais representam a justa medida de saberes que expõem estas duas facetas antagônicas, elevando todo o tesouro que Cheik Anta Diop expôs em tantos trabalhos acadêmicos, sem, no entanto, descurar da interrupção que o advento do tráfico atlântico e do colonialismo significara.
A destruição de civilizações, a divisão do continente africano em uma partilha abominável, ou seja, a percepção clara de que o empobrecimento africano e as mazelas que se abateram sobre os africanos em diáspora como produto das engrenagens de países ricos ao longo dos séculos, tudo deve ser debatido no chão da sala de aula. Ao advogar o paradigma da Afrocentricidade, Asante (2019, p. 144) também critica a chamada Educação Hegemônica.
Educação hegemônica só pode existir enquanto a informação acurada e verdadeira for sonegada. Educação hegemônica eurocêntrica somente pode existir enquanto os brancos sustentarem que africanos e outros não-brancos nunca contribuíram para a civilização mundial. É, em grande medida, sobre tais ideias falsas que distinções errôneas são feitas. A verdade, no entanto, nos dá o discernimento dos reais motivos por trás das ações humanas, se alguém escolhe seguir o caminho dos outros ou não. Por exemplo, nenhuma pessoa pode ficar confortável ensinando que a arte e a filosofia nasceram na Grécia se ela aprender que os próprios gregos ensinaram que o estudo destas disciplinas começou na África, especialmente no antigo Kemet (HERÓDOTO, 1987).
A ruptura com as pedagogias conservadoras ou mesmo progressistas que não reconheçam a Afrocentricidade representa um desafiador combate contra os erros, preconceitos e racismo epistêmico e científico que se agasalham nos discursos, teorias e argumentação da Educação Hegemônica, segundo Asante (2019) “A iniciativa dominante para uma reforma curricular total é o movimento que está sendo proposto e liderado pelos africanos, a saber, a ideia afrocêntrica.” Afrocentrar práticas educativas também se revela como uma meta da Educação Brasileira.
Em virtude da proteção oferecida pela sociedade e reforçada pelo currículo eurocêntrico, as crianças brancas já estão a frente das afro-americanas desde a primeira série. Nossos esforços, então, devem se concentrar em dar, às crianças afro-americanas, grandes oportunidades de aprendizagem desde o jardim de infância. No entanto, o tipo de assistência que a criança afroamericana necessita é tanto cultural quanto acadêmico. Se é oferecida informação cultural adequada, o rendimento acadêmico certamente será satisfatório. Quando se trata de educar crianças afro americanas, o sistema educacional americano não necessita de ajustes, ele precisa de uma revisão geral. Crianças negras têm sido difamadas por este sistema. A história negra tem sido difamada. A África tem sido difamada. (ASANTE 2019, P. 145,146)
As desigualdades étnicas na educação não são apenas um problema norte americano, mas, o Brasil também experiência esta tragédia, se a evasão escolar afeta mais crianças negras, se uma formação escolar deficitária para o concorrido mercado de trabalho, se empregos subalternizados, precarizados ou a uberização e o mercado informal, ou mesmo os índices de desemprego ou desalento possuem sempre afro-brasileiros como as vítimas, tudo isso denuncia a urgência necessidade de que desde a educação infantil as relações étnico raciais sejam valorizadas do ciclo de alfabetização ao ensino médio, porém se o contexto escolar for o quilombola a obrigatoriedade do Estado e de todos os agentes envolvidos, professores, gestores, supervisores pedagógicos, dirigentes municipais de educação e prefeitos e tornam ainda maiores, pois dentro da topografia do negro na sociedade brasileira são os quilombolas e os periféricos aqueles que mais sofrem as vergastas do racismo estrutural.
REFERÊNCIAS
ASANTE, Molefi Kete. A ideia afrocêntrica em educação. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação. Número 31: mai.-out./2019, p. 136-148. DOI: https://doi.org/10.26512/resafe.vi30.28261.
Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013.
hooks bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017.
MADHUBUTI, Hari R. Educação Afrocentrada: Seu valor, importância e necessidade no desenvolvimento de crianças negras. Journal of Education, Boston University (Vol.172, No.2), 1990. Tradução de Roberta Maria Federico.
*Ana Cristina Fonseca é quilombola (Quilombo Santa Joana/ Itapecuru Mirim). Administradora, acadêmica de Pedagogia e Direito e membra consultiva da Comissão de Direitos Humanos e Comissão da Verdade da Escravidão Negra no Brasil da OAB/MA.