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O rap, bell hooks e a educação escolar quilombola como prática da liberdade

Ana Cristina Fonseca, acadêmica de Pedagogia e Direito

Ana Cristina Fonseca

Não se pode discutir relações étnico raciais em um contexto quilombola sem resgatarmos a relevância pedagógica dos letramentos raciais, o processo que Magda Soares denomina de alfaletrar.

O alfaletramento não se socorre apenas de gêneros textuais verbais escritos, mas, também, de canções, que trazem em suas letras saberes acerca de variados temas, dentre os quais, a cultura africana e afro brasileira, podemos assim identificar no samba um grande repositório de referências , exemplos de compositores como Paulinho da Viola, Candeia, Jorge Aragão nos revelam condições de possibilidade de obtenção de letramentos raciais no contexto escolar quilombola, letras como “Nas veias do Brasil” de Luiz Carlos da Vila:

“Os negros / Trazidos lá do além-mar / Vieram para espalhar/ Suas coisas/ transcendentais / Respeito / Ao céu, a terra e ao mar/ Ao índio veio juntar / O amor, à liberdade / A força de um baobá / Tanta luz no pensar / Veio de lá / A criatividade / Tantos o preto velho já curou / E a mãe preta amamentou/ Tem alma negra o povo / Os sonhos tirados do fogão A magia da canção / O carnaval é fogo / O samba corre / Nas veias dessa pátria – mãe gentil / É preciso altitude / De assumir a negritude / Pra ser muito mais Brasil.

Textos como a letra supra transcrita oportunizam discutir-se sobre o contributo dos povos originários e africanos, assim como europeus à formação civilizatória brasileira, o que enseja um aprofundamento necessário às relações étnico raciais, vetor indissociável no combate à intolerância multiétnica.

Buscamos no presente artigo discorrer acerca da possibilidade de compreendermos a educação escolar quilombola como prática de liberdade a partir de duas referências fecundas na contemporaneidade das formas artísticas afro diaspóricas e no pensamento feminista negro, a saber: O rap e as reflexões de bell hooks, particularmente em sua obra “Ensinando a transgredir: A educação como prática de liberdade.”

O rap representa uma expressão urbana contemporânea da diáspora africana que ao lado do skate, Breaking e grafite compõe os elementos da cultura hip hop que desde sua gênese assumira um comprometimento com a discussão de temáticas relevantes para a população negra no mundo como a violência policial, o encarceramento, desemprego, a corrupção política e outros aspectos, a natureza diaspórica intercontinental do rap reside na constatação histórica de que não obstante tenha em Nova York seu registro de nascimento, o rap se origina de imigrantes oriundos da Jamaica, em conformidade com Loureiro ( 2017, p.420 )

Ainda que os Estados Unidos tenham sido o país onde o rap se constituiu como componente do hip-hop, as raízes dessa expressão musical remetem à Jamaica da década de 1960. Os toasters jamaicanos – mestres de cerimônia que versavam sob o ritmo de batidas musicais – transitavam em carros equipados com aparelhagem sonora e, na forma de canto falado, expunham a situação de pobreza e violência que vivenciavam em Kingston. Em 1969, o DJ jamaicano Kool Herc emigrou para Nova Iorque, levou seu equipamento de som e popularizou no Bronx aquilo que viria a ser o rap. (HATCH, 2006; WALKER, 2008)

O rap surge no cenário novaiorquino em um contexto de agravamento de inúmeras problemáticas sociais que afetavam o gueto, regiões majoritariamente constituídas por afro-americanos como o Bronx e o Brooklin, segundo Loureiro (2017, p. 420)

O movimento hip-hop emerge num contexto de reestruturação neoliberal da cidade de Nova Iorque, processo que se inicia em fins da década de 1960. O colapso da infraestrutura física e institucional ligada aos grupos sociais subalternos, a ampliação do desemprego, o crescimento dos bolsões de pobreza – compostos majoritariamente por negros e hispânicos – e o aumento das taxas de violência podem ser consideradas consequências de um processo de restauração do poder político-econômico das classes dominantes estadunidenses em que a dimensão corporativo-financeira avançou sobre as noções de bem estar social. (HARVEY, 2008).

A contestação da ordem estabelecida, segregadora e discriminatória que confinava a população negra a guetos em uma situação precária, no entanto, começa a pautar as letras do rap a partir dos anos 1980 com grupos como Public Enemy, a experiência se radicaliza com o subgênero chamado gangsta rap, iniciado com o grupo NWA (Niggas With Attitude, “negros com atitude”), segundo Leal (2007, p.96)

O NWA estoura com o sucesso de “Fuck tha police”, do álbum Straight outta Compton. Ice Cube, integrante do grupo, teria recebido do FBI uma carta ameaçadora por conta do álbum. Embora o Public Enemy tivesse causado forte repercussão na sociedade, o grupo não chegou a causar o impacto do gangsta rap. Nascido nas ruas do bairro de Compton, o gangsta mostraria ao mundo, através de uma linguagem desmedida, a dura realidade do gueto

A força deste movimento extrapolara as fronteiras norte-americanas chegando ao Brasil, podendo-se elencar como marcos relevantes em 1984 “Chega às telas de cinema do Brasil, o filme Na Onda do Break, responsável pela conversão de muitos jovens das periferias do país em b-boys.” (LEAL, 2007) e o lançamento em 1988 da coletânea “Hip-hop cultura de rua”, pela gravadora Eldorado, “revelando grandes nomes do rap nacional, como Thaíde & DJ Hum, O Credo, MC Jack e Código 13.” (LEAL 2007)

            Uma educação antirracista, que discuta as relações étnico raciais em um contexto escolar quilombola não pode ignorar o contributo das manifestações contemporâneas da própria cultura e arte negra e o rap expressa possibilidades fecundas de discussão de inúmeras temáticas, uma experiência específica com letras do grupo Racionais Mc’s encontra-se no artigo “O rap dos Racionais Mc’s e a valorização da identidade do jovem negro e da periferia pela via do consumo.” Escrito pelas professoras Mônica Guimarães Teixeira do Amaral e Raquel Mendonça Martins.

A partir da audição de canções como “Capítulo 4, versículo 3” e “Otus 500” problematiza-se a temática do consumo a partir dos conceitos de pós modernidade, sob o filtro da ideologia individualista hedonista teorizada por Gilles Lipovetsky e cultura do prazer e consciência trágica de Michel Maffesoli, contudo o que desenvolve a reflexão é a afirmação da aluna “D”, que após afirmara “Eu daria todo o meu dinheiro para ter um tênis desse.” Acerca do trecho do rap “Capítulo 4, versículo 3” que afirma “Pelo rádio, jornal, revista e outdoor/ te oferece dinheiro, conversa com calma/ contamina seu caráter/ rouba sua alma.”

            Após a audição, “ao contrário da reação esperada, os jovens apresentaram uma argumentação discordante dessa ideia, principalmente a jovem “D”, que saiu em defesa de suas preferencias por determinadas marcas caras de tênis.” (AMARAL; MARTINS, 2016).

O posicionamento da turma em relação à indústria cultural não fora o esperado pelas professoras que acreditavam que na esteira das reflexões de Theodor Adorno e Max Horkheimer a reflexão seria crítica aos processos de alienação provocados pela propaganda, publicidade e apelo consumista do capitalismo, mas o foco da discussão precisou mudar para contemplar o plano da própria subjetividade de adolescentes oprimidos pela precariedade das condições de vida que encontram na ostentação de objetos de consumo caros uma forma de afirmação em meio à tantas desigualdades que lhes afeta a existência social, ou seja, composição da dimensão subjetiva do adolescente  “ a partir da perspectiva desse sentido trágico que leva o sujeito pós moderno a buscar a felicidade efêmera, por sua vez obtida por meio do consumo.” (AMARAL; MARTINS, 2016)

O exemplo de possibilidade de socorrer-se ao rap para debater temas que envolvam as relações étnico raciais, desenvolvido pelas professoras no artigo supra comentado é um exemplo do que pode ser realizado. Nos últimos anos a cultura rap no Brasil foi enriquecida pelo hibridismo de linguagens musicais ao dialogar com o funk, o pop e outros ritmos e estilos, mas também surgiram artistas que enriqueceram ainda mais a experiencia da qual os Racionais Mc’s foram um dos pioneiros, pode-se citar os rappers Sabotage ( precocemente assassinado), Crioulo, Emicida, Djonga e Baco Exu do Blues este último recebeu em 2019, o Gran Prix do Festival Cannes Lions, segundo o site  https://oglobo.globo.com/um dos mais importantes do mercado publicitário, com o curta-metragem “Bluesman”, do seu disco homônimo.

O prêmio veio na categoria Entertainment for Music (entretenimento para música)” A canção “ Bluesmann” que dá título ao álbum supracitado traz uma série de reflexões acerca da indústria cultural, aceitação da arte negra e as pluriformes manifestações culturais da música afrodiaspórica

Eu sou o primeiro ritmo a formar pretos ricos / O primeiro ritmo que tornou pretos livres / Anel no dedo em cada um dos cinco / Vento na minha cara, eu me sinto vivo / A partir de agora considero tudo blues / O samba é blues, o rock é blues, o jazz é blues / O funk é blues, o soul é blues, eu sou Exu do Blues / Tudo que quando era preto era do demônio / E depois virou branco e foi aceito, eu vou chamar de blues

A canção em sua última estrofe questiona os clichês e estereótipos que o cinema e a indústria musical atribuem à população afrodescendente e exalta personagens da cultura pop e universo político que representam referencias para as novas gerações, a despeito de um algumas expressões de gírias ou palavrões que o rap possua, a citação dos mesmos permite ao professor discutir linguagem, variações linguísticas e o uso artístico que os vocábulos ou expressões fraseológicas podem ensejar em um contexto cultural específico.

Eles querem um preto com arma pra cima / Num clipe na favela gritando: Cocaína / Querem que nossa pele seja a pele do crime / Que Pantera Negra só seja um filme / Eu sou a porra do Mississipi em chama / Eles têm medo pra caralho de um próximo Obama / Racista filha da puta, aqui ninguém te ama / Jerusalém que se foda, eu tô à procura de Wakanda, ah

As possibilidades de trabalhar com letras de rap são múltiplas e envolvem todos os componentes curriculares, um exemplo reside no artigo A corporalidade negra nas músicas do rapper Emicida: referências para o Ensino de Ciências”, de Tatiana Galieta, que analisa inúmeras canções que abordam sob matizes diversos a corporalidade, a exemplo de “Samba do Fim do Mundo” (EMICIDA 2013)

Em “Samba do Fim do Mundo”, Emicida fala sobre “guerra racial”, “revolução morena” usando a primeira pessoa do plural: “Somos a contraindicação do Carnaval, Nagô de tambor digital” e “Somos a bomba, redenção, Napalm”. Existe uma tensão entre “nós” e os “outros”. O “nós” pode ser entendido como qualquer grupo minoritário. Apesar disso, incentiva a luta, o amor, a coragem (“não ter medo”) e a humildade (“ser maior”), apesar de sentir dor. A sensibilidade humana da resistência Negra margeia a corporalidade na música. “

Se o lugar de fala dos grupos minoritários em um cenário que corteja o distópico, em uma modernidade complexa e líquida é discutido em “Samba do Fim do Mundo”, fé, corporalidade e arte confluem na construção de “Ubuntu Fristaili”, que segundo Tatiane Galieta:

Tem como tema a fé, elevando a música ao status de religião. Nela, a corporalidade manifesta-se em pessoas de Axé, pela adoração aos orixás (Ogum e Xangô) com um beat de percussão que remete aos tambores de terreiros (“De pele ou digital tanto faz é tambor”). O apelo do refrão guarda relação com o racismo sofrido por pessoas de religiões de matriz africana.

A fé, a solidariedade e a ressignificação da masculinidade, tão necessária para uma educação feminista que objetive a igualdade de gênero é discutida também na canção “Principia” (EMICIDA, 2019), consoante Tatiane Galieta:

 A fé também está presente em “Principia”, que conta com a participação do Pastor Henrique Vieira, em versos como: “Se a benção vem a mim, reparto” e “Deus, por que a vida é tão amarga?”. A questão da sensibilidade de homens pretos (que rompem com o estereótipo do “rapper mau/ gângster” e, consequentemente, com uma masculinidade viril) apresenta-se nesta música por meio da solidariedade, a própria filosofia Ubuntu: “Cale o cansaço, refaça o laço / Ofereça um abraço quente / A música é só uma semente”

A propósito da ressignificação da masculinidade e da compreensão de gênero e sexualidade para além da dimensão estreita da heteronormatividade, a corporalidade de corpos trans, gays e o racismo em sua face histórica a protrair-se no tempo e a reinventar-se na contemporaneidade são discussões revisitadas no pujante rap “Mandume”, acerca do mesmo afirma Tatiane Galieta:

A letra traz diversas referências a personagens históricos, línguas e territórios africanos, aos orixás e a episódios recentes de violência contra pessoas negras. Destaco a corporalidade com ênfase em questões de gênero especificamente a objetificação e a violência contra corpos de mulheres e gays. Enquanto Drik canta: “Tanta ofensa, luta intensa nega a minha presença / Chega! Sou voz das nega que integra resistência”, Dalasam reforça: “Pior que eu já morri tantas antes de você me encher de bala / Não marca, nossa alma sorri brigar é resistir nesse campo de fardas”. Em um país que mais comete feminicídios e assassinatos da população LGBTQI+, é essencial seja dada visibilidade aos corpos que foram tratados pela ciência moderna como “aberrações biológicas” ou “desvios de padrões”.

As canções analisadas pela Bióloga são um exemplo das possibilidades que o rap enseja para a desconstrução do racismo estrutural, institucional, os darwinismos sociais e as narrativas eurocêntricas que negam o contributo africano para a formação do Brasil, necessário se faz que os professores que conduzem o alfaletramento no chão das escolas e a quem cabe a construção de um ensino antirracista nas comunidades tradicionais se desnudem de preconceitos acerca de expressões da música contemporânea como o rap, o funk e outros gêneros musicais sabidamente ouvidos por adolescentes, não se trata de censurar ou ignorar, mas revisitar com chaves hermenêuticas e abertura para ideias flexíveis a partir do que é enunciado.

Educação como prática da liberdade perpassa educar os sentidos, ir ao encontro de tudo que é humano para problematizar-se criticamente, reflexivamente, o aluno e a escola são parte de sociabilidades heterogêneas, gírias ou palavrões que violem os padrões de linguagem que a branquitude elegera como normativos não deixarão de ser ouvidos e falados no contexto familiar e social dos alunos, é parte da finalidade da escola trazer o vivido, o vivenciado e interpretá-lo à luz de saberes e conhecimentos, é desafiador para muitos educadores de perfil conservador trabalhar com letras de rap ou funk, porém inexiste educação libertadora que não seja aprioristicamente transgressora e ensinar a transgredir foi especialidade de uma pensadora norte americana que privara da amizade com Paulo Freire, bell hooks.

bell hooks é a voz de escritora norte americana Gloria Jean Watkins, que faleceu em 15 de dezembro de 2021, professora de Língua Inglesa do City College de Nova York, prolífica escritora, teórica do feminismo negro e ativista que se dedicara à várias temáticas, dentre as quais a Educação, que abordara em muitos escritos, dentre os quais os coligidos na obra “Ensinando a Transgredir: A educação como prática da liberdade.”

O que uma autora que estudara em uma escola como Booker T. Washington, ainda sob a vergasta segregacionista das leis de Jim Crow e vivenciara a novidade dramática de estudar em uma escola integrada quando isso era uma experiencia por vezes avassaladora para crianças negras, posto que a maioria dos professores eram brancos e não incentivavam suas potencialidades como as professoras negras o faziam na escola segregada, o que esta mulher de outro país, falante de outro idioma possui como lição para o ensino das relações étnico raciais no contexto escolar dos quilombos brasileiros?

Sabe-se que a exclusão e marginalização, a precariedade e o racismo de todas as experiencias afro diaspóricas foram igualmente trágicas nos últimos séculos e a educação sempre foi um conquista de direito auferido com sangue, suor e lágrimas, naquela realidade em que bell hooks crescera a simples discussão acerca de relações étnico raciais era um desafio homérico, porém a superação das barreiras raciais e sociais e a integração da comunidade afro-americana consolidara-se em exemplo para que no Brasil avancemos na materialização de um direito fundamental amiúde negado. Ao discorrer sobre a Pedagogia engajada que desenvolvera a partir do contato com Paulo Freire e o monge budista vietnamita Thich Nhat Hanh, afirma hooks (2017, p.25)

A educação como prática da liberdade é um jeito de ensinar que qualquer um pode aprender. Esse processo de aprendizado é mais fácil para aqueles professores que também creem que sua vocação tem um aspecto sagrado; que creem que nosso trabalho não é o de simplesmente partilhar informação, mas sim o de participar do crescimento intelectual e espiritual dos nossos alunos. Ensinar de um jeito que respeite e proteja a alma de nossos alunos é essencial para criar as condições necessárias para que o aprendizado possa começar do modo mais profundo e mais íntimo.

A educação como prática da liberdade, o ensinar a transgredir que a educação das relações étnico raciais precisa assumir como um direito fundamental em um país como o Brasil, marcado pelo racismo estrutural, consiste em um ensino democrático, conforme a citação, onde “ qualquer um pode aprender”, essas lições foram extraídas da crítica de Paulo Freire à sistemática de acúmulo e armazenamento que ele denominara de educação bancária, um marco confessado por bell hooks quando de seu ingresso no ensino superior, a autora também pontua a relevância da transgressão que poder-se-ia chamar de epistêmica, didática e metodológica para uma pedagogia verdadeiramente engajada, segundo hooks ( 2017, p.25)

Ao longo dos meus muitos anos como aluna e professora, fui inspirada sobretudo por aqueles professores que tiveram coragem de transgredir as fronteiras que fecham cada aluno numa abordagem do aprendizado como uma rotina de linha de produção. Esses professores se aproximam dos alunos com a vontade e o desejo de responder ao ser único de cada um, mesmo que a situação não permita o pleno surgimento de uma relação baseada no reconhecimento mútuo. Por outro lado, a possibilidade desse reconhecimento está sempre presente.

Professores que motivem, fomentem e laborem no desenvolvimento das potencialidades e auto estima, ou seja, transgressores, representa uma conquista que pode ser materializada no perfil docente expresso no próprio projeto político pedagógico escolar, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola(2013,p.448) dispõe que “ O projeto político-pedagógico a ser construído é aquele em que os estudantes presentes nas escolas da Educação Escolar Quilombola possam estudar a respeito dessa realidade de forma aprofundada, ética e contextualizada. ” Conhecer e valorizar a própria identidade, tradição e história representa com aprofundamento é uma marcha pedagógica que só se exaure em suas elevadas finalidades se tiver à frente da embarcação um educador-timoneiro comprometido com a transgressão epistêmica de um ensino antirracista e decolonial, a exemplo das professoras negras de Booker T Washington, onde bell hooks estudara.

O compromisso delas era nutrir o nosso intelecto para que pudéssemos nos tornar acadêmicos, pensadores e trabalhadores do setor cultural – negros que usavam a “cabeça.” Aprendemos desde cedo que nossa devoção ao estudo, à vida do intelecto, era um ato contra – hegemônico, um modo fundamental de resistir a todas as estratégias brancas de colonização racista. (HOOKS, 2017, p. 10)

Educação como prática de liberdade é revelar aos alunos o poder transformador que a leitura, as artes, a cultura e a valorização dos estudos podem assumir na trajetória vivencial, continua sendo contra – hegemônico e um ato de resistência garantir o direito fundamental de saberes encarnados na realidade étnico racial de crianças, adolescentes e jovens quilombolas.

Aprender a resistir é saber quais armas podem ser manejadas na luta contra o racismo estrutural, enquanto as sociabilidades do aquilombamento habilitam o quilombola para transformar estruturas sociais engessadas com as engrenagens da afetividade, os estudos representam o escudo, o elmo, a couraça e a lança que acompanharão o jovem  egresso da escola pública nos aguerridos arraiais das batalhas da vida, o exemplos das professoras negras de Booker T Washington continua vivo nas memórias afetivas de bell hooks.

Embora não definissem nem formulassem essas práticas em termos teóricos, minhas professoras praticavam uma pedagogia revolucionária de resistência, uma pedagogia profundamente anticolonial. Nessas escolas segregadas, as crianças negras consideradas excepcionalmente dotadas recebiam atenção especial. As professoras trabalhavam conosco e para nós a fim de garantir que realizássemos nosso destino intelectual, e, assim, edificássemos a raça. Minhas professoras tinham uma missão. (HOOKS 2017, p. 11)

A missão de acreditar que o aluno é portador de elevadas potencialidades e fecundar essa certeza no sistema de crenças e  valores íntimos do mesmo é um  desafio e uma tarefa necessária para que a auto estima possa conduzir os estudantes quilombolas por caminhos de busca constante do êxito social, da prosperidade econômica e do progresso profissional e acadêmico, como se percebe do relato de bell hooks aquele exemplo motivacional e profundamente humanista de suas professoras que sabiam que em um país segregado não havia outro caminho que não fosse a educação.

A presença transgressora de educadores que semeiem portentosas expressões de empoderamento subjetivo na alma de seus alunos representa não apenas a consolidação de um direito fundamental que favorece a formação plena, integral e por conseguinte antirracista de seres humanos, mas também o esculpir de sujeitos de direitos talhados para uma vida democrática, a necessidade dessa postura na prática pedagógica urge:

Levantamentos recentes, apontam para uma ampliação nas produções em torno da temática racial, com quantitativos orbitando em torno 75,86% dentre as teses e dissertações produzidas a partir de 2000, nas quais, dentre os aspectos verificados, ainda se evidencia a crítica aos elementos sob os quais a escola apresenta-se estruturada: “a) seletiva; b) hierárquica; c) fundada nos pressupostos do universalismo e d igualdade abstrata e d) individualista.” (COELHO; SOARES 2015, P.152 – 153)

Percebe-se que se precisa avançar na construção de uma escola participativa, dialógica, democrática e que no contexto escolar quilombola seja, sobretudo antirracista.

Os estudos voltados para a interface racismo e educação na sociedade brasileira apontam, há muito, para a necessidade de reflexão quanto ao lugar que os debates sobre as questões raciais ocupavam na escola. A falta dessa reflexão apresenta-se dentre outros fatores, como responsável por uma prática de segregação no espaço escolar que apresentará vários efeitos para os grupos que são alvos deste processo. (COELHO; SOARES 2015, p. 152)

A escola é um ente constituído por pluralidade de sujeitos da comunidade educativa e as mudanças envolvem aprioristicamente que a prática docente seja compreendida a partir do paradigma da diversidade que perpassa o contexto dos quilombos pois “para lecionar em comunidades diversas, precisamos mudar não só nossos paradigmas, mas também o modo como pensamos, escrevemos e falamos.” (hooks 2017, p. 22), assim sendo, as particularidades dos desafios exigem avaliação constante do próprio labor educativo, inexistem verdades estanques e dogmáticas na contextualidade das relações humanas e “a voz engajada não pode ser fixa e absoluta. Deve estar sempre mudando, sempre em diálogo com um mundo fora dela.” (hooks 2017, p.22)

A realidade social e por conseguinte escolar das comunidades originárias e tradicionais é plural e diversa, poder-se-ia falar de multicultural, as etnias indígenas com seus idiomas e expressões próprias, assim como povos ciganos e colônias europeias, o que não se diferencia quando falamos de quilombos, posto que estes possuem particularidades regionais, uma formação histórica distinta e elementos que os distinguem uns dos outros, a exemplo de que enquanto em alguns as religiões de matriz africana predominam, em outras existe sincretismo e em muitas não existe a presença do fator religiosidade afro, mas uma catolicidade pulsante, o multiculturalismo permeia as comunidades remanescentes de quilombo e seu reconhecimento é uma condição inarredável para o ensino das relações étnico raciais:

O multiculturalismo obriga os educadores a reconhecer as estreitas fronteiras que molduram o modo como o conhecimento é partilhado na sala de aula. Obriga todos nós a reconhecer nossa cumplicidade na aceitação e perpetuação de todos de parcialidade e preconceito. Os alunos estão ansiosos para derrubar os obstáculos ao saber. Estão dispostos a se render ao maravilhamento de aprender e reaprender novas maneiras de conhecer que vão contra a corrente. (hooks 2017, p.63)

As novas maneiras de conhecer , as formas criativas, decoloniais e contra hegemônicas representam a essência de uma educação como prática de liberdade, pois inexiste formação plena e integral do ser humano sem o exercício da reflexão crítica, da criatividade e da libertação da alienação que os colonialismos exercem sobre os espíritos; em uma nação erigida sobre o genocídio dos povos da floresta e a exploração da mão de obra de escravizados, em um país marcado pelas consequências nefastas de uma concentração de renda e desigualdades regionais, sociais e econômicas, a decolonialidade resgata saberes esquecidos, silenciados ou interditados.

Como desenvolver uma educação quilombola reproduzindo as mesmas assertivas eurocêntricas que sempre povoaram nosso currículo? Sem desconstruir os preconceitos e ignorância acerca do contributo africano para a engenharia, astronomia, química e matemática? Assumir a multiculturalidade é trazer para o chão da escola as descobertas de Cheik Anta Diopp, é utilizar os saberes sobre mumificação egípcia para mostrar o quanto os africanos foram sofisticados em sua medicina e em seus conhecimentos químicos, um universo de possibilidades se manifesta com a postura epistêmico-didática anunciada por bell hooks.

Quando nós, como educadores deixamos nossa pedagogia seja radicalmente transformada pelo reconhecimento da multiculturalidade do mundo, podemos da aos alunos a educação que eles desejam e merecem. Podemos ensinar de um jeito que transforma a consciência, criando um clima de livre expressão que é a essência de uma educação em artes liberais verdadeiramente libertadora.  (hooks 2017, p.63)

A formação das sociedades contemporâneas sempre foi marcada pela heterogeneidade étnica, o colonialismo com o julgo escravista contra os povos originários das américas e os negros africanos, além da migração oriunda das grandes guerras no século XX e o fluxo demográfico para países ricos consolidara a multiculturalidade, que também reflete nas últimas décadas a própria globalização e o neoliberalismo.

Neste universo de tensões entre tradição e modernidade, o reconhecimento da multiculturalidade referenciada por bell hooks é um percurso para uma educação quilombola que em um contexto global não descura das raízes profundas que ligam a diáspora à própria África e em meio à tantas ameaças reacionárias ao progresso da cultura democrática, a decolonialidade tanto é salutar na desconstrução de dogmas epistêmicos quanto constitui um dos poucos mecanismos que permitem realocar conhecimentos na centralidade que a marginalização e racismo cientifico por séculos negara através das esferas de poder dominadas pelas elites. Em seu artigo “Educação Afrocentrada: Seu valor, importância e necessidade no desenvolvimento de crianças negras” Haki R. Madhubuti afirma:

A educação multicultural afrocentrada é dirigida pela verdade, respeito ao conhecimento desejo de aprender e a paixão pela excelência. No que diz respeito a educação “centrada”, a importância da cultura não é simplesmente relegada ou minimizada à tarefa de ser sensível às diferenças culturais ou apreciar e explorar superficialmente o terreno comum de diferentes povos. Assim como a fundação de uma educação multicultural, a cultura, o processo e os sujeitos da educação, servirão como meios e mecanismos para o ensino, aprendizagem, aconselhamento e gerenciamento /gestão educacionais.

A citação supra transcrita resgata a participação dos sujeitos de aprendizagem, suas memórias, cultura, ancestralidade e fisionomia identitária na construção de um ensino afrocentrado, alicerçado na multiculturalidade, na esteira das considerações suscitadas por bell hooks em seus escritos.

Percebe-se assim, que as relações étnico raciais estão irmanadas a inúmeros conceitos e construções teóricas que intelectuais negros ou não negros comprometidos com novos paradigmas educacionais desenvolveram e desenvolvem, por isso expressões como educação antirracista, feminista, afrocentrada, multicultural, antirracista e outras, cada qual com peculiaridades de um arcabouço teórico e conceitual próprios, mas todos a conceber uma pedagogia engajada e um ensino como prática da liberdade, posto que transgressor em suas abordagens inovadoras.

REFERÊNCIAS

COSTA BATISTA, Ana Carolina Mota da. Relações étnico-raciais no contexto quilombola: currículo, docência e tecnologia. Curitiba: Appris, 2020.

COELHO, Wilma de Nazaré Baía; OLIVEIRA, Julvan Moreira de. Estudos sobre relações étnico-raciais e educação no Brasil. São Paulo: Editora Livraria de Física, 2016.

Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013.

FONSECA, Marcus Vinicius; SILVA, Carolina Mostaro da Silva; FERNANDES, Alexsandra Borges. Relações Étnico Raciais e educação no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2011.

GALIETA, Tatiana. A corporalidade negra nas músicas do rapper Emicida: referências para o Ensino de Ciências. Ensino de Ciências e Biologia: Cultura e Arte 10.46943/VIII.ENEBIO.2021.01.02

LEAL, Sérgio José de Machado. Acorda hip-hop! despertando um movimento em transformação. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007.

MULLER, Tânia Mara Pedroso; COELHO, Wilma de Nazaré Baía; FERREIRA, Paulo Antônio Barbosa. Relações Étnico Raciais, formação de professores e currículo. São Paulo: Editora Livraria de Física, 2015.

https://oglobo.globo.com/cultura/musica/baco-exu-do-blues-supera-beyonce-jay-e-leva-premio-em-cannes-23748593

Rev. HISTEDBR On-line, Campinas, v.17, n.2 [72], p.419-447, abr./jun. 2017

ROCHA, Rosa Margarida de Carvalho. Educação das relações étnico-raciais: pensando referenciais para a organização da prática pedagógica. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007.

SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1998.

SOARES, Magda. Alfaletrar: Toda criança pode aprender a ler e a escrever. São Paulo: Contexto, 2021.

*Ana Cristina Fonseca é quilombola (Quilombo Santa Joana/ Itapecuru Mirim).  Administradora, acadêmica de Pedagogia e Direito e membra consultiva da Comissão de Direitos Humanos e Comissão da Verdade da Escravidão Negra no Brasil da OAB/MA.

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Ana Cristina Fonseca

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Antonio Fernando

Excelente trabalho é um ótimo Livro


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