Texto: Giovana Kury
Da Agência Pública
Os sinais de que a forte chuva se aproximava apareceram por volta de 1 hora da manhã do dia 22 de abril, no município de Mata Roma, a 280 quilômetros de São Luís, a capital do Maranhão. Moradora do povoado Lagoinha, que fica na região, Ivonete Aquino conta que o alerta da inundação partiu da sogra. “A gente não imaginava que era do tamanho que veio”, contou. Com medo, ela pegou os três filhos – de 11, 7 e 1 ano de idade – e correu para a casa da vizinha, onde permaneceu até o dia amanhecer. Quando retornou, tinha perdido todos os móveis na inundação. “Até roupa das crianças, tudo foi embora.”
A casa da sogra dela, localizada no mesmo povoado, desabou. “Ela perdeu a casa e eu perdi as minhas coisas, que a gente tanto luta para construir. A gente foi chorar, mas depois pensou que o melhor é estar vivo”, disse. Em Lagoinha, onde moram pelo menos cem famílias, ao menos dez casas foram totalmente destruídas pelas enchentes, de acordo com o Diário Oficial do Município. A maioria das residências atingidas era construída de adobe, que são tijolos de terra crua.
Dos 217 municípios do Maranhão, ao menos 31 decretaram situação de emergência este mês pelo impacto das chuvas fortes. Na última semana, a Defesa Civil do Maranhão informou que havia pelo menos 1.031 famílias desabrigadas e outras 2.909 desalojadas. Uma pessoa morreu. A situação do estado é grave e, em um momento em que o país enfrenta uma tragédia de grandes proporções no Rio Grande do Sul, o pânico impulsiona boatos e notícias falsas na internet. Na última semana, imagens de cheias históricas que impactaram cidades maranhenses em 2023 viralizaram nas redes sociais, como se tivessem sido registrados este mês. O governador Carlos Brandão (PSB) divulgou uma nota desmentindo os conteúdos alarmistas. Na nota, contudo, Brandão afirma que “todas as famílias que estavam desabrigadas já retornaram para suas casas”. Mas a realidade é diferente.
A Agência Pública apurou que ainda há famílias desabrigadas e desalojadas em vários dos municípios atingidos pelas chuvas. Em Anapurus, município de 13,7 mil habitantes, ao menos 11 famílias que tiveram suas casas derrubadas ainda estão desalojadas, de acordo com a Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado do Maranhão (Fetaema). Todas estão vivendo na casa de familiares, sem previsão para retornar às suas residências.
POR QUE ISSO IMPORTA?
As chuvas fortes estão deixando um rastro de destruição no Maranhão. Ao menos 31 cidades decretaram situação de emergência. Embora o governador do estado garanta que todas as mais de 3 mil famílias que ficaram desalojadas ou desabrigadas já retornaram às suas casas, a reportagem mostra que muitas pessoas ainda estão sem ter onde morar.
Destino internacional de turismo, que abriga o Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses, Barreirinhas, a 254 quilômetros de São Luís, teve vários bairros alagados. De acordo com o secretário de Segurança Cidadã do município, Francisco Soares, 120 famílias ainda estão desalojadas. Os abrigos delas têm sido, na maior parte das vezes, casas de parentes ou alugadas.
Iraci Vilar, que mora com os dois filhos no bairro Vila Esperança, teve que deixar sua casa às pressas no mês de abril, que foi atingida pelas fortes chuvas. Sem ter como voltar, atualmente está com eles em uma casa alugada. “É bem caro, bem pesado, fora a conta de luz e de energia”, conta.
O governo estadual informou que “as famílias afetadas recebem auxílio das coordenadorias municipais da Defesa Civil e/ou secretarias municipais de assistência social, que prestam a pronta resposta nessas situações”. Mas Iraci não está recebendo auxílio aluguel. O secretário Francisco Soares informou que a prefeitura de Barreirinhas não está distribuindo auxílios financeiros e disse que as pessoas estão “apenas recebendo o Bolsa Família”. “Por parte do estado, nada chegou. A última vez o governador entregou 60 cestas básicas. Foi a única coisa que até agora nós recebemos”.
No município de Mata Roma, que tem 17.090 habitantes, 37 famílias ficaram desabrigadas porque tiveram suas casas destruídas pelas chuvas do mês de abril. Pelo menos 31 famílias ainda estão sem residência. No dia 3 de maio, a prefeitura de Mata Roma decretou situação de emergência em cinco diferentes povoados: Lagoinha, Barra do Roberto, Barra dos Macacos, Guadalupe e Primeiro Campos. Segundo o próprio Diário Oficial do Município, essas pessoas “estão morando de favor em casa de parentes ou amigos”.
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Desde a chuva forte em 14 de abril até o momento da publicação desta matéria, Naijane Brito, moradora de Mata Roma, ainda não havia retornado à sua casa, invadida pela água. “Quando foi para voltar para a minha, já não consegui. A água não deu passagem. […] A gente se agoniou muito. Ainda bem que, graças a Deus, a gente só perdeu as coisas e as casas, e não morreu ninguém.” Junto com o marido e os quatro filhos, ela mora em um abrigo improvisado, feito de palhas de palmeira e sacos, ela espera ajuda. Naijane disse que não está recebendo auxílio financeiro da prefeitura.
No começo do mês de maio, o governo federal enviou recursos para algumas prefeituras maranhenses que haviam decretado situação de emergência. O valor repassado ao estado ultrapassa R$ 1,5 milhão. Somente o município de Lagoa Grande, onde pelo menos 80 famílias ficaram desabrigadas, recebeu quase meio milhão de reais.
A Pública questionou a prefeitura de Lagoa Grande sobre quantas pessoas ainda estão desabrigadas e sobre quanto dos recursos enviados pelo governo federal será destinado para ajudar essas pessoas. A prefeitura não retornou até a publicação. Questionamos também as prefeituras de Mata Roma e Barreirinhas sobre a ajuda financeira para as famílias desabrigadas, mas não recebemos retorno até o momento.
“Falta preparo para lidar com eventos climáticos extremos”
O medo de alagamentos, as noites mal dormidas e as perdas são situações que se repetem quase todos os anos em várias cidades do Maranhão. No ano passado, uma cheia histórica castigou municípios do interior. Em abril de 2023, 67 municípios decretaram situação de emergência e 7.757 pessoas ficaram desabrigadas ou desalojadas.
Em janeiro do ano passado, o governador criou o Comitê Gestor de Prevenção e Assistência às Populações Vítimas das Chuvas (CPAV), formado pela Polícia Militar, Corpo de Bombeiros, Defesa Civil e diversas secretarias estaduais, com o intuito de alinhar estratégias de prevenção a esses desastres. O comitê chegou a se reunir em fevereiro deste ano, mas já era tarde. No mês seguinte, o caos se instalou quando fortes chuvas começaram a cair sobre os municípios maranhenses, muitos deles dentro da Amazônia Legal. Para este ano, a Lei Orçamentária Anual (LOA) destinou R$ 70 mil em ações de Prevenção de Risco da Defesa Civil no Maranhão. O valor é maior do que o orçado para 2023, de apenas R$ 20 mil, mas não foi suficiente para evitar a crise.
O professor do Departamento de Geociências da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) Ronaldo Sodré diz que “falta de preparo dos governos brasileiros para lidar com eventos climáticos extremos”. “Há até mesmo negacionismo e ceticismo climático de governantes quanto a um quadro da realidade que é do presente”, diz. Para ele, “fenômenos como o aumento do calor, o aumento do nível dos oceanos, secas extremas, chuvas em abundância, dentre outros, mostram que já vivemos em um estado de emergência climática.”
O professor associa os desastres causados pelas chuvas ao desmatamento, que causa desequilíbrio ambiental e agrava as enxurradas. De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em 2023 o Maranhão foi o estado brasileiro que mais desmatou o Cerrado. Foram 2.927,52 km², 3,30% a mais que no ano anterior. O município de Balsas, potência do agronegócio maranhense, foi o primeiro no estado e terceiro do país que mais desmatou (319,08 km²).
“Nas últimas décadas, diversos empreendimentos se instalaram no estado sem uma observação aos impactos socioambientais. Pelo contrário, se observa até mesmo um empenho deliberado por parte do Estado para que eles se estabeleçam e assim possam contribuir para um pretenso desenvolvimento”, opinou Sodré. “No Maranhão, o agronegócio tem provocado o desmatamento, perda da biodiversidade, erosão dos solos, contaminação dos solos, ar e água, esgotamento dos recursos hídricos, geração de resíduos, dentre outros. Cabe mencionar que, em outro momento, atividades econômicas devastaram outro bioma maranhense, que é o amazônico”, alertou o professor.
Nesta segunda-feira (13), em meio à crise causada pelas chuvas, o governador do Maranhão, Carlos Brandão, esteve no município de Balsas com o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, para a abertura da 20ª Agrobalsas, evento que reúne produtores rurais e pecuaristas de todo o país. O governo se comprometeu a investir no setor. Em dezembro do ano passado, o governador sancionou a Lei 12.169, apelidada por movimentos sociais de “Lei da Grilagem”. Em uma movimentação favorável ao agronegócio, ela amplia de 200 para 2.500 hectares as terras públicas que podem ser adquiridas pela iniciativa privada, além de impedir que terras tradicionalmente ocupadas por população quilombola, quebradeiras de coco e demais povos e comunidades tradicionais sejam objeto de regularização fundiária.
À época, o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar manifestou preocupação e apontou, na legislação, o “potencial de acirramento de conflitos agrários, notadamente no que diz respeito às disputas territoriais envolvendo povos e comunidades tradicionais”. Além do crescimento do agronegócio, o Maranhão é o segundo estado brasileiro com maior incidência de conflitos no campo, segundo levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em 2023.