Por Igor de Sousa*
Não tem novidade! O ex-senador José Sarney sempre trabalhou no sentido de promover o culto a sua personalidade e, mais do que isso, fraudar sua biografia. Neste primeiro semestre de 2023, ocorreram dois fatos relacionados a essa questão.
Primeiro foi uma matéria publicada no site da UOL, onde Sarney teve seu nome ligado ao do coronel Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, condenado por comandar sessões de tortura, durante a ditadura militar implantada no Brasil, a partir de 1964. A matéria é do último dia 24 de abril.
O segundo fato é toda uma articulação no sentido de ligar a imagem de José Sarney a de Gonçalves Dias, por conta do bicentenário de nascimento do poeta, a ser comemorado no próximo mês de agosto.
O Convento das Mercês esteve no centro dos dois fatos. O imóvel tombado – que há mais de 30 anos abriga um memorial da fraude – foi o tema central da matéria da UOL, a que ligou José Sarney a Ustra.
E o mesmo Convento das Mercês, no último dia 30 de maio, passou a abrigar um busto de Gonçalves Dias. A estátua está no prédio histórico como um espantalho, tentando afugentar os espíritos dos torturadores.
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Substituto de Vitorino
Durante quase cinco décadas, Sarney comandou a secular estrutura oligárquica do Maranhão. Chegou ao poder no estado com o apoio dos militares, que deram o golpe em 1964.
A partir da ditadura implantada no Brasil, ele começou a substituir o ex-senador Vitorino Freite, no posto de oligarca local. E como já foi tido por quem estudou o assunto a sério, Sarney não derrotou Vitorino Freire. Ele substituiu.
Já em 2014, com a imagem bastante abalada junto à opinião pública brasileira, Sarney não viabilizou sua reeleição no Amapá e não articulou um candidato dele, ao governo do Maranhão.
E como ficaram Sarney e seu grupo a partir de 2015? O que houve com a estrutura? Temos agora na política do estado uma liderança soberana, como um dia foram Vitorino e Sarney? Ou temos hoje um grande condomínio? Por que não temos mais oposição na Assembleia Legislativa do Maranhão?
E como Sarney e os seus surfaram na polarizada conjuntura nacional? Como tiraram proveito da acirrada disputa entre Lula e Bolsonaro? A capital federal segue sendo um ponto central, para explicar o poder maranhense?
São perguntas a serem respondidas com a devida calma, conhecimento e honestidade intelectual.
Raízes profundas
Mesmo sem mandato e com mais de 90 anos, o ex-senador segue tendo o seu grupo. É uma turma que manteve poder, tanto no Maranhão, quanto em Brasília. É um poder que diminuiu, mas ainda é grande, enraizado.
Ele se organiza a partir dos filhos do antigo oligarca, começando por Fernando Sarney, diretor da CBF e chefe do Sistema Mirante/Globo/golpista. E passa diretamente por Roseana, além de figuras e organizações que seguem lucrando com as articulações de sempre.
Esse poder, evidentemente, está vinculado a partidos políticos. O MDB – onde Sarney é presidente de honra do diretório nacional e Roseana ainda atua na condição de relações públicas – é o mais visível. Mas o MDB não explica toda a engrenagem partidária.
O grupo sempre foi como um enorme molusco, com vários tentáculos. Hoje, por exemplo, o partido de Edir Macedo (Republicanos) passou a ser controlado, no Maranhão, por Aluísio Mendes, alinhado com o clã há décadas.
Vaidade e dinheiro
E já caminhando para o fim desse texto, reforçamos que sempre existiu uma operação permanente para tentar polir a imagem do oligarca José Sarney.
Essa operação atende a vaidade do antigo candidato a faraó, que já pensou até num mausoléu no Convento das Mercês. Mas serve também aos que ganham dinheiro, a partir do grupo que leva o nome do ex-senador.
Isso é óbvio. É melhor ser visto como aliado de um intelectual, democrata; do que ser apontado como comparsa de um oligarca, aliado de torturadores.
E até que ponto é possível maquiar a biografia de um homem que presidiu o partido da ditadura (ARENA) e liderou um processo de grilagem de terras no Maranhão?
Sarney e seus aliados seguem a serviço de um latifúndio que promoveu e ainda promove um banho de sangue no Maranhão, vitimando trabalhadores rurais, quilombolas e povos originários. Basta observar a recente ação de Roseana, em favor do Marco Temporal.
Mas a fraude da biografia de Sarney é uma operação pesada! Tem muitos cúmplices! É um jogo que envolve inclusive todo um cartel midiático, chegando até os dois últimos jornais impressos de São Luís, que publicam os artigos semanais de Sarney.
Os fatos
Apesar do esforço e da desonestidade de sempre, existe um José Sarney de verdade! É aquele que, quando a Presidência da República lhe caiu no colo, nomeou Ustra para um cargo no Uruguai.
É o mesmo Sarney que foi o único civil a ser acionado por Ustra, para atuar como testemunha de defesa, quando o militar foi processado por seus crimes, covardias e barbaridades, incluindo a tortura de crianças e o estupro de grávidas.
Existem os fatos! E são inúmeros os registros, documentos oficiais, livros, artigos, jornais, trabalhos acadêmicos, veículos alternativos, discursos parlamentares.
Historiografia é ciência. E nem todo conchavo lhe alcança! Lembro que alguém já disse que “o tempo é o senhor da razão”.
E por fim, como fica Gonçalves Dias no meio disso? O famoso poeta faleceu em 3 de novembro de 1864, há 159 anos. Sua memória não pode ficar entregue as costumeiras manipulações do poder. Seria um absurdo!
*Igor de Sousa é antropólogo e fez mestrado e doutorado na área. É autor do livro Movimento Quilombola do Maranhão.
Bibliografia consultada
A terceira margem do rio – Wagner Cabral da Costa e Marcelo Carneiro (organizadores)
Guerrilhas – Flávio Reis
Jornal Vias de Fato
Grupos políticos e estrutura oligárquica no Maranhão – Flávio Reis
O caso do Convento das Mercês – Emilio Azevedo
Os autênticos do MDB – Ana Beatriz Nader
Uma subversiva no fio da história – Emilio Azevedo
Sob o signo da morte: o poder de Victorino a Sarney – Wagner Cabral da Costa