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Como o catador de lixo está inserido no sistema capitalista

Fernando Eurico L. Arruda Filho

Defensor Público do Estado do Maranhão

How the garbage collector is inserted in the capitalist system

Resumo

A lógica do sistema capitalista é a ampliação do valor de troca das mercadorias. Com a priorização da embalagem das mercadorias, em detrimento do efeito prático destas, perfaz-se a lógica esquizofrênica da cadeia incessante da obsoletização dos produtos, os quais possuem cada vez mais uma menor vida útil. O reaproveitamento dos produtos ingressa nessa reprodução ampliada do capital para ter valor de troca, por isso o interesse do capital na reciclagem. No segundo momento do circuito econômico, configura-se a mais-valia do catador de lixo, o qual é inserido na sistemática, como reciclador, em condições aviltantes, ficando à mercê de atravessadores e sucateiros. A lucratividade desse segundo ciclo advém da precarização do catador. Para amenizar essa situação, devem ser instituídas a coleta seletiva e associações e cooperativas de catadores, além de campanhas publicitárias educativas para a coleta a partir dos domicílios e a efetivação da Lei 12.305/10 (Política Nacional de Resíduos Sólidos).

Palavras-chave: 1. Capitalismo. 2. Obsoletização. 3. Catador.

Abstract

The logic of the capitalist system is the expansion of the exchange value of goods. With the prioritization of the packaging of goods, to the detriment of their practical effect, the schizophrenic logic of the incessant chain of obsolescence of products, which have an increasingly shorter useful life, is made. The reuse of products enters this expanded reproduction of capital to have exchange value, hence the interest of capital in recycling. In the second moment of the economic circuit, the added value of the garbage collector is configured, which is inserted in the system, as a recycler, in demeaning conditions, being at the mercy of middlemen and scrap dealers. The profitability of this second cycle comes from the precariousness of the collector. To alleviate this situation, selective collection and associations and cooperatives of collectors should be instituted, in addition to educational advertising campaigns for collection from households and the implementation of Law 12,305/10 (National Policy on Solid Waste).

Keywords: 1. Capitalism. 2. Obsolete. 3. Waste picker.

O catador como elemento necessário para um sistema que o expele

Hoje se prega muito o discurso do meio ambiente sustentável. Uma das principais recomendações da Agenda 21 da ECO 92 foi a reciclagem de resíduos sólidos, com vistas à diminuição dos problemas ambientais, economia de energia e evitar desperdício. A reciclagem é o reaproveitamento do que se desperdiça. É a recuperação das potencialidades de uso do produto através de processos de transformação físico-químicos, tendo o produto, ao final, valor de troca. Assim, o reaproveitamento diminui a degradação ambiental.

Como a fabricação prioriza a embalagem em detrimento do efeito prático do produto, o descarte de rejeitos na natureza assumiu proporções inimagináveis na nossa sociedade essencialmente consumista. Por isso a importância da reciclagem.

O catador de lixo é uma simples peça de uma engrenagem bem mais complexa e grandiosa. A lógica esquizofrênica capitalista segue a seguinte ordem quanto ao ciclo dos produtos: 1ª) fabricação; 2ª) consumo; 3ª) rejeito; 4ª) catação; 5ª) reutilização; 6ª) nova fabricação; 7ª) novo consumo; e 8ª) novo rejeito. Ou seja, o circuito econômico é a industrialização, o consumo e o descarte (resíduo sólido), numa cadeia incessante.

O elemento fundante do sistema capitalista é a obsoletização das mercadorias que significa a diminuição cada vez maior da vida útil dos bens de troca. O ciclo de reprodução capitalista se alimenta do aumento do mercado de troca, surgindo, a partir disso, o mercado cada vez maior dos ferros velhos. Com a taxa decrescente de utilização do valor de uso das mercadorias, acelera-se a produção e o posterior descarte. O capitalismo se autorreproduz por esse motor.

O capital se preocupa somente com sua reprodução ampliada. Não se importa com o destino das mercadorias e o aproveitamento delas. É uma contradição imanente ao próprio sistema capitalista o qual gera novas necessidades e mercadorias a todo instante. Para o mecanismo capitalista, o produto tem que ser vendável, não necessário ao consumo humano. São despiciendas a utilidade ou mesmo o próprio desperdício. A sistemática ampara-se sempre numa evolução sem quaisquer limites.

Marcelino Gonçalves bem elucida essa questão:

Neste sentido a produção capitalista não visa primordialmente a satisfação da necessidade dos produtores diretos, ou de qualquer outro membro da sociedade. O seu fim é garantir o ímpeto de reprodução do capital através do consumo, e esta é a racionalidade, a razão que lhe dá sentido. Daí, pouco interessar a utilidade ou o desperdício das mercadorias por quem as adquire, desde que ela cumpra a sua função no sistema do capital. (GONÇALVES, 2006, p. 105)

A mercadoria tem que ter valor de troca através de uma transação comercial de modo que a partir disso se evidencia a utilidade da mercadoria pelo seu ato de venda. Para o capital, a mercadoria tem que ser menos usada, pois, assim, será logo descartada e substituída por outra para seguir o ciclo de venda de outras peças. O produto tem que se inserir num tempo cada vez diminuto de sequência de troca.

O capital não objetiva a satisfação das necessidades humanas, senão não existiriam famintos no mundo. As mercadorias são cada vez mais frágeis e descartáveis. Quanto mais for diminuída a vida útil da mercadoria, mais o capital se amplia. Isso eleva a produtividade, apesar de o consumo se fincar em número concentrado de pessoas.

Como o consumo é o ápice do processo capitalista, é através dele que o capital se amplia e se reproduz, originando a taxa de utilização decrescente da vida útil das mercadorias cuja expressão é o desperdício, como aponta mais uma vez Marcelino Gonçalves:

O desperdício é expressão da taxa decrescente de utilização, que abrevia a vida útil das mercadorias e gera uma grande quantidade de resíduos, de coisas que não servem mais para quem as dispensa. No entanto, sabemos que esse objeto, agora sem utilização, não perdeu as suas características físico-químicas, nem sua forma corpórea deixou de ser fruto de trabalho humano socialmente organizado. O que acontece é que ele está no momento de seu descarte, posto fora de um contexto social e econômico que lhe dava sustentação enquanto objeto útil e ingressa em outro contexto socioeconômico e político. (GONÇALVES, 2006, p. 107)

A racionalidade, portanto, é do desperdício, ocasionando a destruição do meio ambiente. Karl Marx assenta que a produção das mercadorias reproduz o próprio sistema capitalista. E qual o interesse do capital na reciclagem? Por que a reciclagem faz parte de uma outra engrenagem que sustenta uma reprodução ampliada do capital?

Um dos problemas decorrentes do consumismo é a geração de resíduos sólidos e o reaproveitamento destes é a solução para um meio ambiente saudável e sustentável. Além disso, no que diz respeito ao trabalho, o catador de lixo participa de uma outra dimensão social e econômica em toda essa estrutura do capital. É o circuito econômico da reciclagem, com a compra e venda, transporte, armazenamento e pré-processamento dos produtos mais procurados: papel, plástico e metais, por terem mais poder de troca.

Para que esse segundo momento econômico exista, o trabalho do catador de lixo é essencial.

O trabalho de catação, que dá vida a um sistema que o expele, é feito em ruas, lixões, cooperativas e usinas de triagem e compostagem. O catador é a base de uma segunda etapa do circuito econômico do capitalismo, pois reciclam os materiais rejeitados.

Essa reciclagem é realizada em condições aviltantes, sem vínculo formal e remuneração digna, gerando grande margem de lucro àqueles que se apropriam do trabalho do catador de lixo. A lucratividade diminuiria se ocorresse o fornecimento de chapéus, botas, luvas, óculos e máscaras aos catadores, além da construção de diversos outros aparatos em prol dos catadores.

Para Marx, a produção no capitalismo dá-se pela mais-valia. Segundo ele, o valor da mercadoria produzida tem que ser maior que a soma dos valores das mercadorias, meios de produção e força de trabalho exigidos para a produção daquela.

Ou seja, para o capitalismo, uma mercadoria só é considerada um produto do trabalho humano quando ela preencher uma relação de troca. Como não poderia ser diferente, no processo de reciclagem também ocorre a mais-valia, que é a apropriação do trabalho humano. O trabalho do catador de lixo é extremamente vilipendiado, sobrepujando sobremaneira a mais-valia.

Quanto à mais-valia, Marx pontua:

Mas a renda pressuposta de toda classe proprietária tem que surgir na produção, e, portanto, ser de antemão uma dedução do lucro ou dos salários […] Para que se aumente o valor do lucro, tem que haver um terceiro cujo valor se reduza. Quando se afirma que o capitalista gasta 30 dos 100 em matéria-prima, 20 em maquinaria, 50 em salário e que logo vende estes 100 por 110, desconsidera-se que, se tivesse desembolsado 60 pelo salário, não haveria obtido lucro algum, salvo que obtivesse mais que os 110, uns 8,2%, etc. Ele troca seu produto por outro cujo valor está determinado pelo tempo de trabalho nele empregado. Vendeu um produto de 20 dias de trabalho, digamos, e obtém um dia por cada dia. O excedente não surge da troca, ainda que tão somente nela se realize. Surge de que deste produto que consome 20 dias de trabalho, o obreiro só obtém o produto de 10, etc., dias de trabalho. Na mesma medida em que cresce a força produtiva do trabalho, decresce o valor do salário. (MARX, 2006, p. 77)

Assim, a operação quanto aos resíduos recicláveis é o outro circuito econômico com um contexto socioeconômico e político bem diferente do primeiro. E qual a lucratividade de um ciclo econômico que trata de algo que foi descartado? O lucro advém de uma precarização cada vez maior das relações de trabalho nas quais o catador está imerso, o qual fica sempre à mercê de sucateiros e atravessadores.

Qualquer esforço no sentido de mudar essa lógica para dar ao catador melhores condições de trabalho é meramente paliativo, pois, no contexto em que o capitalismo se encontra, miséria e deterioração ambiental estão se consolidando mais e mais. A recuperação dos resíduos sólidos objetiva somente reinserir um novo produto no mercado de consumo, sem qualquer outra satisfação, como afirma Marcelino Gonçalves: “(…) a recuperação do valor de uso real e efetivo, no caso dos materiais contidos nos resíduos recicláveis, não objetiva prioritariamente a satisfação de uma determinada necessidade social” (GONÇALVES, 2006, p. 117).

Trabalho e natureza são capturados pelo capitalismo e as consequências disso são degradação ambiental e precarização do trabalho dos catadores. E quais as possíveis soluções?

Possíveis soluções

O poder público municipal tem papel protagonista na amenização desse aviltamento do catador. É obrigação municipal criar centrais de triagem para a comercialização dos resíduos sólidos e inserir os catadores no processo produtivo da reciclagem, conforme a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/10).

Necessária a efetivação de políticas públicas em favor dos catadores já estabelecidas legalmente. Além das condições seguras e higiênica para o exercício do ofício e a inclusão no mercado formal de trabalho, o catador precisa trabalhar com um produto de qualidade. Tem que haver uma reparação anterior dos produtos orgânicos e inorgânicos a fim de evitar contaminação. Isso significa economicidade.

O descarte, portanto, tem que ser de qualidade. Numa ponta do ciclo encontra-se o catador o qual deve estar preparado para receber aquele produto. Por isso a importância da constituição de cooperativas e associações de catadores para as quais devem ser destinados os materiais pertinentes. No início do trânsito, o produto já não pode estar contaminado. As cooperativas e associações devem estar equipadas com o maquinário suficiente para o tratamento do produto. O catador deve ter o treinamento necessário para utilizar as máquinas e se inserir nesse circuito produtivo.

Os produtos descartados são de três espécies: matéria orgânica, rejeito e material reciclável. O trabalho feito em cooperativas e associações de catadores é a triagem, prensagem e estocagem para posterior venda. Para que a recuperação dos resíduos sólidos tenha mais eficácia, é imprescindível uma coleta seletiva cujo fundamento é encaminhar os materiais recicláveis para as cooperativas e associações de catadores, além de não os misturar com os resíduos orgânicos.

Com a coleta seletiva e o devido tratamento dos materiais, o resíduo chegaria mais limpo para os catadores, os quais disporiam de produtos mais comercializáveis e com melhor preço.

Tudo isso passa pela construção de aterros sanitários para os quais devem ser destinados os rejeitos (produtos inservíveis). Mas, antes desse escoamento, o produto deve ser encaminhado para usinas de triagem e compostagem, para recuperação dos recicláveis e armazenamento dos resíduos orgânicos, a fim de que o catador tenha um produto passível de ser transformado para ser recolocado no ciclo das trocas de consumo.

Entretanto, qualquer política que inclua o catador na engrenagem produtiva do capital deve ter como pano de fundo uma campanha de conscientização sobre o programa de coleta seletiva de resíduos sólidos a partir dos domicílios. Para se chegar a um a efetivo descarte seletivo, é imprescindível o envolvimento de toda a sociedade. A consolidação de uma consciência cidadã referente à seletividade dos produtos que irão ao “lixo” é a medida primeira para que todo esse esforço tenha sucesso.

É imprescindível o dispêndio financeiro com campanhas publicitárias educativas para conscientizar a população sobre a coleta seletiva. Isso não beneficia somente o catador, mas todos, haja vista que se terá uma cidade mais limpa e um meio ambiente menos degradado.

Na prática, muitos governantes ficam desestimulados com a enorme despesa pública para o funcionamento de centrais de triagem. Por isso a falta de investimento na coleta seletiva, de maneira que a conscientização do cidadão, através de boas campanhas publicitárias educativas, é o caminho mais eficiente e menos oneroso para que toda essa arquitetura tenha sucesso e o produto chegue ao catador com mais qualidade.   

Por outro lado, devem ser implementadas as políticas públicas da Política Nacional de Resíduos Sólidos estabelecidas pela Lei 12.305/10, a qual consagra todos os direitos dos catadores. Apesar da dificuldade estrutural que o sistema capitalista impõe, como já dito, tem que haver a inclusão dos catadores nesse trajeto econômico para que eles alcancem autonomia através de uma associação ou cooperativa, pois não podem viver somente de assistencialismo.

Com o Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico (Lei 14.026/2020), a execução de ações direcionadas à reutilização, reciclagem e valorização dos resíduos sólidos deve ser efetivada com a participação dos catadores, não somente de empresas privadas de reciclagem.

Enfim, é nesse sentido que se pode dizer que assim se resgatará uma dívida histórica com os catadores e aos quais será dada uma situação menos dramática.

Referências

GONÇALVES, Marcelino Andrade. O trabalho no lixo. 2006. Tese (Doutorado em Geografia) – Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2006. Pág. 105

MARX, Karl. Elementos Fundamentales para la Crítica de la Economía Política (Grundrisse) 1857-1858. vol. 3. Madri: Siglo Veintiuno Editores, 13. ed., 2006.

Sobre o autor

Fernando Eurico L. Arruda Filho

Graduado em Direito pela Universidade Federal do Maranhão-UFMA. Especialista em processo civil pelas Faculdades Integradas Jacarepaguá-FIJ. Atualmente é Defensor Público do Estado do Maranhão e mestrando em filosofia pelo PPGFIL-UFMA.

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Kelly catadora

Grande homem de Deus um canal para nossa história muda


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