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A tradição ateniense e seus sabujos

Flávio Reis

Há pouco mais de duas décadas, em 2001, um pequeno livro causava um rebuliço na historiografia maranhense, A Fundação Francesa de São Luís e Seus Mitos, da professora Maria de Lourdes Lauande Lacroix. Nos anos seguintes, um intenso debate tomou corpo através dos jornais, principalmente no Caderno Alternativo, de O Estado do Maranhão. Livro provocante, de escrita enxuta e direta, trazia uma percepção diferente para uma questão que, de maneira descontínua, perpassou a memória da cidade no século XX: a fundação francesa de São Luís. O debate se arrastou por quase uma década e se ouviu todo tipo de simplismo e sandice para afirmar aquilo que a professora chamou de mito fundador.

Aquele era ainda um tempo em que os debates se faziam pelos jornais. Hoje, com o desenvolvimento da internet e das redes sociais, tudo se modificou muito e os grupos de aplicativos de mensagens são uma forma nova de circulação de ideias e debates. São grupos privados, mas seus integrantes muitas vezes esquecem que não estão numa antiga sala de estar, onde se falava mal dos outros, distorcia a realidade e dava vazão a seus delírios de grandeza pessoal em recintos fechados, o que não impedia os fuxicos e eventuais desavenças. Hoje, nos novos espaços virtuais, as declarações e mensagens ficam gravadas e circulam para além do grupo. É neste contexto que novas sandices são propaladas de forma totalmente agressiva e irresponsável, ditas sem nenhuma base histórica.

É o que ocorreu recentemente num grupo voltado para discussões sobre a cidade de São Luís, onde o sr. Antonio Noberto, que deve se considerar um pesquisador e grande estudioso em defesa das tradições e glória da Atenas Brasileira, saiu com essa pérola do desvario e da torpeza, que transcrevo:

“O posicionamento de Lurdinha Lacroix advém de seu sobrenome. A questão foi importada do Canadá para cá. A origem é o tratado de Paris de 1763, quando a França perdeu a Guerra e depôs as armas. Com a assinatura do Tratado, quando entregou as suas colônias do Norte, especialmente as do Canadá, os franco-canadenses se sentiram abandonados pela pátria e passaram a praguejar a França. Quando ela casou com o expadre Gilles Lacroix ela ‘comprou a briga do Canadá’ contra a França e os Franceses”.

Quanta deturpação, invencionice delirante e infâmia gratuita condensadas em um só parágrafo! Em tempos de propagação de todo tipo de notícias falsas e teorias da conspiração para explicar a história, essa é a forma que a torpeza intelectual, destituída das armas da crítica, utiliza para atacar o que sequer conseguiu entender. Movido pela indignação, volto a recuperar os termos em que o debate se desenvolveu, com a ilusão de que os integrantes deste grupo devotado às glórias do passado ateniense e à louvação da cidade de São Luís, encontrem elementos de reflexão para além dos delírios narcisistas. De início, é bom registrar que Gilles Lacroix, sociólogo e professor aposentado da UFMA, falecido em 2017, era do Québec, província de colonização francesa, extremamente ciosa de suas origens, onde a língua oficial é o francês e que organizou uma grande festa em 2008 para saudar os 400 anos da fundação da cidade por Samuel de Champlain. Nunca se ouviu falar que seus habitantes “praguejem” contra a França e os franceses…

Saindo do campo dos delírios típicos das teorias da conspiração, que ganham corpo nas redes de comunicação virtual, e caindo na vida real, lembro que no ano de 2000, em meio às comemorações dos 500 anos do “Descobrimento do Brasil”, a professora Maria de Lourdes foi contactada pela rádio e televisão estatal francesa, em elaboração de um documentário sobre a presença gaulesa no processo de colonização do Brasil. Muito provavelmente, ela estava no rol dos entrevistados pela sua fluência na língua francesa, pois até então tinha publicado apenas o trabalho de mestrado sobre educação na Baixada Maranhense no período imperial, nunca tinha escrito nada sobre São Luís e seu interesse de leitura estava nos inícios da então chamada Idade Contemporânea, cujos marcos eram a Revolução Industrial e a Revolução Francesa. De cara, no entanto, ela logo adiantou que os franceses não haviam deixado marcas deste período, nem na arquitetura ou no traçado urbano, nem nos costumes, para estranhamento dos interlocutores.

Vale muito ler o texto completo, clicando no link abaixo:

https://drive.google.com/file/d/1oAI0bCKVUi_6w5GtTnZdxDuPA4Cj5seE/view?usp=sharing

Imagem destacada: Beco do popular Xirizal do Oscar Frota, prostíbulo no Centro Histórico de São Luís, nas proximidades do Mercado Central. Foto: Ed Wilson Araújo

Sobre o autor

Flávio Reis

Ele é historiador e cientista político. Professor da Universidade Federal do Maranhão. Tem experiência na área de Ciência Política, com ênfase na formação do Estado brasileiro e no estudo da dominação oligárquica regional. Tem trabalhado também com aspectos da cultura brasileira, como o chamado cinema marginal entre o final dos anos 60 e o início dos anos 70, e a música popular.

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