São Luís, a capital do Maranhão, é uma das poucas no País que ainda possui zona rural. Cercada por uma vegetação de transição entre a Caatinga e a Amazônia, conhecida como Mata dos Cocais, a região é cercada por uma paisagem de rios, manguezais, igarapés e braços de mar. Nessa área, vivem há muito comunidades tradicionais que possuem uma forte relação com os recursos naturais do território: são famílias extrativistas que tiram maior parte do seu sustento da catação de mariscos, da pesca artesanal e da coleta de frutos nativos como a juçara, bacuri, coco babaçu, cupuaçu e caju.
Essas comunidades da zona rural de São Luís vivenciam atualmente a luta pela criação da Reserva Extrativista Tauá-Mirim, que perdura desde 2003, na busca de maiores respaldos por parte do poder público para proteger uma área de aproximadamente 16 mil hectares e garantir justiça ambiental a quem lá vive. Quem visita essas comunidades, pode perceber que estão cercadas por grandes empreendimentos, em um lugar que se tornou o polo industrial de São Luís. Mas nem sempre essa foi a realidade do lugar. A vida na zona rural era sossegada, em uma paisagem limpa e livre das chaminés a expelir fumaça, onde as pessoas viviam em harmonia com a natureza e o medo de perder seus territórios e recursos ainda não assombrava as famílias.
Lucilene Luz, conhecida como Dona Lulu, 44, vive na comunidade do Rio dos Cachorros desde que nasceu. Cresceu trabalhando na roça, plantando mandioca, milho e feijão. Hoje, ela tem como atividade a pesca e a coleta de mariscos, além de cozinhar comidas típicas para venda. Conta que, na infância, costumava tomar banhos de rio, o que hoje não é mais possível, uma vez que a maioria dos mananciais que passavam em sua comunidade foi assoreada pelos empreendimentos desenvolvidos na vizinhança.
“Aqui tem uma jazida de areia, onde foi feito um buraco que suga toda a água ao redor. Hoje, o único rio que temos melhor para o banho é o do Limoeiro. Fora esse, todos secaram. Não temos mais o privilégio de banhar em rios, como na minha infância”, lamenta.
Tudo mudou quando, entre os anos de 1970 e 1980, a Estrada de Ferro Carajás e o Porto de Itaqui passaram a operar na vizinhança. Os equipamentos atraíram as instalações de indústrias que, ao longo dos anos, mudaram a paisagem e a vida das pessoas. As comunidades tradicionais passaram a dividir o território com empresas, como a mineradora Vale; a fábrica de alumínio e alumina Alumar; a produtora de cimento Votorantim; a indústria de celulose Suzano e indústrias de fertilizantes, dentre outras.
Como se os impactos causados pela chegada de tantos empreendimentos não fossem suficientes, as comunidades, que já enfrentavam situação de alta vulnerabilidade socioambiental, tiveram que compartilhar a vizinhança com a queima de carvão mineral por parte da Usina Termelétrica Porto de Itaqui, empreendimento da Eneva que passou a operar na região em 2013. A usina geradora de energia elétrica utiliza capacidade instalada de 360 MW, o que representa cerca de 40% do consumo de todo Estado do Maranhão. A energia gerada é enviada para o subsistema Norte do Sistema Interligado Nacional (SIN).
Desenvolvimento para quem?
Por trás da promessa de desenvolvimento vendida com a chegada desses empreendimentos, vieram o medo, a insegurança, as ameaças de remoção dessas comunidades do território e o comprometimento dos recursos naturais do lugar.
A casa de Dona Lulu, na comunidade rural do Rio dos Cachorros, está situada ao lado de uma das torres da linha de transmissão da termelétrica. Na ocasião em que a visitamos, havia homens trabalhando em frente à sua casa, com tratores e outros equipamentos pesados, a fim de melhorar a estrada que dá acesso à linha de transmissão.
Ela conta que a chegada da termelétrica e dos demais empreendimentos gerou a falsa esperança de empregos e melhoria de vida para as pessoas que vivem nas comunidades do entorno, contudo, ela mesma não conhece ninguém que tenha sido empregado em alguma dessas empresas e esse tal de desenvolvimento para a sua comunidade nunca chegou: “A maioria fica deslumbrada pensando em empregos, mas só o que a gente vê são pessoas que tiveram que ser removidas de suas comunidades e que foram indenizadas, mas ficaram prejudicadas. Essas pessoas acabam perdendo a identidade do território que cresceram, saem do sossego que a gente vive aqui pra ir pra outro lugar que muitas vezes não é tão bom”.
Além disso, Dona Lulu relata que a coleta de marisco vem diminuindo desde a chegada dessas empresas na vizinhança. Ela realiza a pesca em um braço de mar e atribui a redução da quantidade de pescados aos grandes empreendimentos instalados na região: “Nós estamos cercados por essas empresas. O braço de mar onde pescamos dá acesso a várias delas e a quantidade de pescados só vem diminuindo. Lembro que, na época do meu pai, que era pescador, havia muito peixe, e hoje, quando vamos pescar, só conseguimos uma quantidade bem reduzida.”
A quantidade de pescados reduzida não é a única mudança sentida. A segurança alimentar das famílias que vivem nessas comunidades está ameaçada pelos sinais de contaminação do ecossistema costeiro da região. Dona Lulu ressalta que há épocas em que é possível perceber um odor ruim nos peixes e mariscos que são oriundos do braço de mar, hoje contaminado pelas atividades do Porto de Itaqui, que inclui a termelétrica.
Outro sério problema foi a chegada de pessoas vindas de outros lugares, movidas pelas promessas de empregos. Passaram a povoar as comunidades rurais, o que resultou no aumento da criminalidade local, já que algumas dessas pessoas tiveram as expectativas de emprego e melhoria de vida frustradas e encontraram no crime uma alternativa: “Quase todo mundo da nossa comunidade é parente. Outras pessoas vieram atrás de um emprego que não conseguiram e acabam invadindo as terras por aqui. São pessoas que não sabemos quem são e isso tira um pouco o sossego que tínhamos antigamente.”
Para Dona Lulu, a Termelétrica nunca ofereceu nada de bom para a comunidade: “Só fizeram destruir tudo ao redor e o que poderiam recuperar acabam nunca recuperando”.
Ainda nas imediações da geradora de energia, há a Comunidade do Cajueiro, também alvo de pressões por parte das grandes empresas que se instalaram no Complexo do Porto de Itaqui. Lá reside e resiste o líder comunitário, pescador e presidente do Sindicato de Pescadores de São Luís, Clóvis Amorim. As queixas do pescador em relação às injustiças ambientais sofridas em sua comunidade são muitas e não divergem daquilo que ouvimos na Comunidade do Rio dos Cachorros.
“Não se tinha noção do que era uma termelétrica na extensão do que ela é. Muitas pessoas acham que a poluição causada por ela é só o pó do carvão que fica por cima das casas, mas não imaginam o que ela causa, além de toda a poluição que vai para o lençol freático. É um inimigo invisível, que vai nos matando aos poucos. E não sabemos onde isso vai parar”, ressalta.
O impacto na pesca vem claramente sendo percebido pelo pescador, que exerce a atividade desde criança. Ele relata que é perceptível a perda de produção de pescados e questiona o fato de as águas do mar de São Luís serem sempre impróprias para o banho, o que sugere contaminação nos peixes também. Além disso, Amorim pontua o que para ele contribui para a queda de 80% da produção de pescados: “com a chegada da termelétrica, junto com os demais empreendimentos, vieram pessoas de toda parte em busca de empregos. Essas pessoas não conseguiram uma colocação e foram apelar para a pesca em busca de sobrevivência. Tivemos que dividir o espaço com todas elas”.
Aos olhos daqueles que vivem dos frutos do mar e da terra nas comunidades da zona rural de São Luís, os sinais de poluição não estão só nos peixes. “Aqui já percebemos os efeitos da poluição nas frutas. Em períodos de colheita, muitas espécies não vingam o fruto. Isso é um sinal de que nosso ar e nosso lençol freático estão contaminados. Já percebemos a diferença no caju, no murici e no bacuri”, relata Alberto Castanhede, pescador conhecido como Beto, que vive na Comunidade do Taim, também situada nos entornos do Porto de Itaqui.
Beto atenta para o fato curioso de sua lida no mar, na qual atribui à poluição e dragagens feitas nos rios, ao longo dos anos. O pescador conta que anualmente havia um ciclo de sardinhas que iniciava no mês de março e perdurava até novembro. Por se tratar de peixes pequenos, as sardinhas atraem outros maiores, como a pescada-amarela, que possui grande valor comercial. Esse ciclo, contudo, vem mudando, resultando em uma menor quantidade de peixes disponíveis para a pesca.
Engajado nas lutas em defesa de seu povo e território onde está inserida a Comunidade do Taim, Beto conta que teve a oportunidade de fazer uma caminhada no entorno da termelétrica. Na oportunidade ele verificou uma tubulação de 600 milímetros que descarta no mar água em altas temperaturas, que é usada para o resfriamento dos equipamentos. Além disso, no entorno há um brejo, mangue e vertedouros de água, que já mostravam sinais de carvão permeando a terra. Sobre o mangue, pôde ser observada uma grande quantidade de poeira de carvão que compromete o ecossistema.
Poluição em São Luís
O ativista ambiental e advogado Guilherme Zagallo, que se dedica a estudos e lutas a favor das comunidades impactadas e do meio ambiente, compara a poluição em São Luís à de Cubatão, em São Paulo, um dos mais poluentes polos industriais no Brasil. Um último dado, divulgado em 2017, pela Secretaria de Estado da Indústria, Comércio e Energia do Maranhão, revela 48 mil toneladas de poluentes por ano. Considera-se que à época já estavam saturados os índices aceitáveis de poluentes. “Estima-se que a saturação seja ainda maior do que é divulgado”, destaca o advogado.
Para o ativista, a situação local é preocupante, uma vez que a ciência comprova que todos os poluentes liberados pela termelétrica e os demais empreendimentos matam e adoecem as pessoas em longo prazo. “Basta um micrograma por metro cúbico de elevação desses poluentes para implicar em mortes de pessoas expostas a essa poluição. O desenvolvimento em São Luís mata a população do entorno do distrito industrial, em uma morte silenciosa”.
Um agravante para os danos à saúde dessas populações expostas a tanta poluição é a falta de acesso facilitado à serviços de saúde. Não há estrutura de postos de saúde ou atendimento médico eficaz na maioria dessas comunidades. Trata-se de um problema subnotificado ou totalmente ausente das estatísticas. Mas sorrateiramente, no lado obscuro da história, há relatos de pessoas adoecendo, apresentando câncer, doenças respiratórias e outras complicações possivelmente causadas pela poluição.
Impactos levantados pela Ciência
Ainda há poucos dados levantados pela comunidade científica maranhense a respeito dos impactos causados pela presença das termelétricas. Contudo, grupos de estudos da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) já vêm reunindo informações que podem comprovar o quão nocivos são esses empreendimentos para a saúde das pessoas e do meio ambiente.
Um dos estudos se concentra no entorno do Complexo Parnaíba, no município de Santo Antônio dos Lopes, onde há outra termelétrica gerida pela Eneva, esta movida a gás natural. “Nas comunidades vizinhas há relatos de pessoas que já não conseguiam dormir por causa do cheiro permanente de gás na comunidade”, conta o professor da UFMA e antropólogo Horácio Antunes de Sant’ana Júnior.
Os relatos de contaminação de pescados, assim como da terra e de recursos hídricos também estão sendo documentados nestes estudos. O professor Horácio explica uma das formas como pode se dar essa poluição: “A Termelétrica do Porto de Itaqui é movida a carvão mineral. Esse carvão que vem da Colômbia, é acumulado a céu aberto e nos períodos de chuva os dejetos escorrem e contaminam os igarapés e recursos hídricos da região atingindo as áreas de pesca”.
Antunes avalia que um dos grandes problemas é a ausência de um órgão estatal fiscalizador desses empreendimentos que faça também esse levantamento de dados. Atualmente, os impactos são mensurados e apontados pela própria empresa poluidora para obter um licenciamento. “Contudo os dados apresentados pelos empreendimentos já são alarmantes e causam preocupação quanto à situação da poluição do ar no Maranhão.
Há ainda a ameaça de chegada de outras termelétricas ao Estado: a Geramar III e São Marcos I e II. Esses novos empreendimentos, apesar de serem movidos a gás natural e serem menos poluentes que o carvão mineral, somariam aos outros e agravariam a situação de poluição local e outros impactos já esperados.
Poder público em ação
O Ministério Público Federal do Estado do Maranhão (MPF-MA) vem, desde o processo de implantação da Termelétrica do Porto de Itaqui, realizando intervenções e investigando a conduta do empreendimento, a fim de assegurar que ele opere dentro da legalidade.
Inicialmente, o licenciamento ambiental concedido pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) foi questionado judicialmente e atualmente passa por uma fase de perícia e elaboração de um relatório que ficou sob a responsabilidade de profissionais encarregados pela Justiça Federal.
De acordo com Alexandre Soares, procurador da República, estando a usina já em funcionamento, foi aberta uma ação civil pública contra o Ibama, que concedeu o licenciamento e fixou parâmetros para o funcionamento da termelétrica sem monitorar de fato o grau de lançamento de afluentes que eram originados pelo seu funcionamento. A partir disso, a Justiça Federal determinou que esses relatórios de auto monitoramento que a empresa fazia passassem a ser analisados efetivamente pelo Ibama e submetidos a medidas corretivas.
O procurador da República considera que há um processo de acompanhamento bastante judicializado a respeito da Usina Termelétrica do Porto de Itaqui. Segundo ele, houve a discussão dos primeiros estudos ambientais que foram apresentados e que foram considerados pelo MPF-MA como insuficientes: “Se confirmou aquilo que se apontava desde o início: que os estudos não tinham um grau de confiabilidade suficiente e a usina acabou gerando muito mais lançamento de efluentes atmosféricos do que o originalmente previsto”.
Para Alexandre Soares, a implantação da Geramar III, uma nova termelétrica que se anuncia na zona rural de São Luís, é preocupante, embora venha a funcionar a gás natural: “É possível que, numa análise acumulativa, verificando os riscos e efeitos energéticos desses empreendimentos, tenha uma degradação ainda maior desta qualidade ambiental,” finaliza.
A Eco Nordeste entrou em contato com a Eneva, empresa que gerencia a Termelétrica do Porto de Itaqui desde o dia 27 de julho de 2022 até a data da postagem desta reportagem, em 8 de agosto de 2022. Em 19 de agosto de 2022, a assessoria de comunicação enviou e-mail com as respostas que seguem abaixo:
“A Eneva esclarece que realiza o monitoramento constante de emissões, qualidade do ar, água subterrânea e águas costeiras (incluindo igarapés) e nos efluentes gerados (industrial, torre de resfriamento, sanitário e final) em todas as suas operações termelétricas, com todos os dados publicados de forma transparente e auditados por terceira parte. Todos os dados e laudos analíticos são reportados ao IBAMA, em conformidade com o licenciamento recebido do órgão federal.
Conforme estudo de impacto ambiental aprovado pelo órgão competente, as comunidades de Cajueiro e Rio dos Cachorros não são impactadas diretamente pela usina termelétrica (UTE) de Itaqui, tendo apenas a linha de transmissão de energia em seus territórios. Ainda assim, a comunidade solicitou à Eneva a melhoria da estrada de Rio dos Cachorros, o que foi avaliado e atendido pela companhia.
A Eneva informa, ainda, que hoje a UTE Itaqui conta com 200 colaboradores, dos quais 74% são profissionais do Maranhão, realizando programa de operadores para atuais e futuras oportunidades, sempre priorizando a mão de obra local.
A Eneva reforça seu compromisso de contribuir com a redução da intensidade de emissões e garantir a segurança energética. A companhia incorporou à sua Missão e Visão liderar uma transição energética justa e inclusiva, com um compromisso de investir R$ 500 milhões até 2030 em tecnologias de baixo carbono, incluindo pilotos de CCUS e desenvolvimento de hidrogênio.”
Esta reportagem faz parte de uma série sobre os impactos socioambientais causados pela presença de usinas de geração de energia termelétrica em estados do Nordeste executada pela Eco Nordeste em parceria com o ClimaInfo. Ela aborda o que comunidades tradicionais vêm enfrentando no Maranhão, sobretudo na zona rural de São Luís.
(Foi publicado originalmente no site da Eco Nordeste)