Por Ed Wilson Araújo
O jornalista e escritor Perseu Abramo tem uma obra clássica que deveria ser recomendada para os estudantes de Comunicação e o público geral: “Padrões de manipulação na grande imprensa”. É um livro necessário para entender como um fato, ao percorrer o processo de produção, circulação e consumo do Jornalismo, passa por diversas mediações e intervenções, até mesmo não vir a ser uma notícia, ou seja, não ocupar as manchetes ou ficar na periferia da periferia de um meio de comunicação.
Quando um fato torna-se “não notícia”, significa dizer que é desprezado, minimizado, silenciado ou peremptoriamente descartado, embora tenha o seu grau de importância e seja de relevante interesse público.
Perseu Abramo chama esse padrão de ocultação:
“É o padrão que se refere à ausência e à presença dos fatos reais na produção da imprensa. Não se trata, evidentemente, de fruto do desconhecimento e nem mesmo de mera omissão diante do real. É, ao contrário, um deliberado silêncio militante sobre determinados fatos da realidade…”.
O silêncio militante pode ser observado na passagem do Presidente da República do Benin, Patrice Talon, em São Luís, capital do Maranhão, sábado, 25 de maio de 2024.
O fato passou longe das manchetes na maioria dos meios de comunicação. A TV Mirante (Rede Globo) produziu matéria de 49 segundos sobre o ilustre africano.
No site do Governo do Estado do Maranhão constam um texto de 37 linhas com a manchete “Presidente do Benin visita o Maranhão para estreitar laços culturais e reafirmar conexões históricas” e um vídeo de 02:02 (dois minutos e dois segundos) sobre os lugares percorridos pelo noticiado.
Nas matérias mencionadas, relata-se o percurso da comitiva presidencial pela Casa das Minhas, Museu do Negro, Cafua das Mercês e Memorial da Diáspora Africana, todos localizados na região do Centro Histórico de São Luís.
E só!
A República do Benin, ex-Daomé, fica localizada na África ocidental e foi um dos maiores polos de tráfico de escravos para o Brasil, no contexto da diáspora africana.
Uma das mulheres escravizadas e traficadas do Benin chegou ao Maranhão e fundou, em São Luís, a Casa das Minas, um dos mais antigos territórios de religião afro-brasileira no país, em meados do século XIX.
Aqui chamada Maria Jesuína, Nã Agontimé era a rainha do antigo reino daomeano e primeira dona e chefa da Casa das Minas ou Querebentã de Zomadônu, que quer dizer, na língua gege, casa grande protegida por uma divindade.
Na obra “Os tambores de São Luís”, do escritor Josué Montello, o lugar onde as vodunsis descendentes da rainha faziam seus rituais é uma das principais referências da narrativa sobre 300 anos de escravidão na personagem Damião.
Entre as celebrações da casa, onde também se praticam festividades católicas, destaca-se o tambor de mina. Nele, o culto e os rituais são dirigidos aos voduns, entidades vigilantes da natureza e das doenças. Eles também incorporam as vodunsis ou filhas-de-santo.
Pela sua importância histórica, religiosa e cultural, este território sagrado é um tema recorrente em centenas de pesquisas nacionais e internacionais, livros, artigos, roteiro turístico e lugar de culto e festas.
Em 1980, a escola Flor do Samba foi a campeã do Carnaval de São Luís com o enredo “De Daomé à Casa das Minas: a origem de um povo”.
Benin e São Luís têm, portanto, uma conexão ancestral e diplomática, como veremos adiante.
Apesar de toda essa potência noticiosa, o Excelentíssimo Senhor Presidente da República do Benin foi ignorado pela Assembleia Legislativa do Maranhão, desprezado na Câmara dos Vereadores de São Luís, invisibilizado na Academia Maranhense de Letras, desconhecido pelo Tribunal de Justiça e Ministério Público, mas, sobretudo, desconsiderado pelas duas principais autoridades do Poder Executivo: o prefeito e o governador.
No seu périplo pelos equipamentos culturais de São Luís, teve alguns momentos com secretários do governo, entre eles o chefe da Casa Civil, Sebastião Madeira, que presenteou o presidente com guaraná jesus (veja imagem destacada/divulgação).
O visitante sequer foi recebido no Palácio dos Leões e no Palácio La Ravardière, respectivas sedes dos executivos estadual e municipal.
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A “não notícia” da visita presidencial se dá em dois sentidos entrecruzados. O primeiro foi o estrondoso desprezo (perdoe o oxímoro) das principais autoridades e instituições culturais sediadas em São Luís diante de uma personalidade ilustre.
O segundo sentido, caudatário do primeiro, refere-se ao quase silêncio total dos meios de comunicação na cobertura do presidente africano, que, mesmo estando aqui em visita de cortesia, merecia muito mais atenção.
A responsabilidade primeira pelo tratamento desprezível ao Presidente do Benin é das autoridades formais. Se elas não fizeram as honrarias e os eventos para recepcionar o visitante, o nível de cobertura tende a ser menor, considerando a força geradora de notícias emanadas dos atos institucionais.
A segunda culpa é da mídia. Excetuando-se a cobertura já mencionada, a quase totalidade dos meios de comunicação local passou ao largo de um acontecimento de interesse internacional.
Nós todos falhamos, inclusive este que vos escreve e pede desculpas por só agora, devido ao corre de sempre, mencionar o fato.
Mas, ainda é tempo de fazer uma suíte e pautar, para o interesse local, um tema internacional.
Aqui entra o recorte diplomático. Quando visitou o Brasil e esteve com o presidente Lula, em 23 de maio de 2024, Patrice Talon revelou um projeto ousado: oferecer nacionalidade a todos os afrodescendentes espalhados pelo mundo. O projeto está em análise no poder legislativo do Benin, ancorado na tese do “panafricanismo” – um argumento em torno da unidade da África para superar o atraso imposto pelo cruel processo de colonização.
Se aprovado, o projeto terá uma importância especial para o Brasil, o principal destino do tráfico negreiro originário do Benin.
Eis aí mais um motivo para a suíte sobre o ilustre visitante que passou quase despercebido.
Qual seria o interesse dos afrodescendentes do Maranhão na ideia de Patrice Talon para conceder nacionalidade no Benin?
O Maranhão já homenageou muita gente ruim… São tantos, que para encurtar a lista cabe mencionar apenas um grotesco exemplo de culto aos brancos do mundo ocidental cristão: Lord Cochrane, um usurpador, é aqui tratado como herói da Adesão do Maranhão à Independência do Brasil.
Se algum descendente deste homem fizesse uma visita de cortesia à provinciana São Luís, em pleno século XXI, seria recebido com todas as honras e banquetes palacianos, capaz de receber muitas manchetes elogiosas também.
Já o preto Presidente do Benin, representante de um pequeno país africano, amigo das relações internacionais com o Brasil, sequer recebeu menção na Câmara dos Vereadores.
Por que uns fatos são noticiados e outros não?
Voltemos a Perseu Abramo:
“…todos os fatos, toda a realidade pode ser jornalística, e o que vai tornar jornalístico um fato independe das suas características reais intrínsecas, mas depende, sim, das características do órgão de imprensa, da sua visão do mundo, da sua linha editorial, do seu “projeto”.
Texto publicado originalmente no blog do Ed Wilson, com o título “Benin: a “não notícia” de uma visita presidencial ao Maranhão”
Não li do texto a palavra “racismo”… ou não precisa?