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Corpo Marcado: Cinco anos depois, como vivem os povos tradicionais do Maranhão que sobrevivem a um ataque.

Por Ed Wilson Araújo (texto) e Gui Christ ( fotos)

Colaboração para o TAB de Viana (MA)

Os Akroá-Gamella em seu território: Na Foto, Maria e Kum’tum (mãe e filho)

As chuvas dos primeiros seis meses do ano criam espelhos d’água nos campos naturais e lagos da Baixada Maranhense. Por eles, as canoas guiadas pelos indígenas Cruupoohré, Rokrã e Rop Prupru rasgam a vegetação sobre o Lago do Aquiri, até a reportagem do TAB alcançar o sítio onde vive um homem mutilado e perseverante.

Aldeli de Jesus Ribeiro (Pan Akroá-Gamella), 42, tem cicatrizes espalhadas por todo o corpo, resultado de ferimentos por arma de fogo, facadas, chutes e pauladas sofridos no Massacre dos Gamella, em 30 de abril de 2017, um ataque cometido contra os indígenas de Viana, a 214 km de São Luís.

“Sou um dos heróis do meu povo. Vivi de novo”, anunciou, entre lágrimas, lembrando o dia em que levou um tiro nas costas, teve os pulsos e a perna esquerda decepados e dois cortes profundos na cabeça — um deles expondo uma profunda fenda na testa —, além de laceração na boca, provocando a perda de cinco dentes.

Às margens do Aquiri, na aldeia Centro dos Antero, Ribeiro comemora o renascimento. O nome escolhido para sua identidade indígena — “pan” — é sinônimo de semente.

“A ordem era para matar todo mundo, até as crianças”, recorda-se outra vítima do ataque. José Ribamar Mendes Akroá-Gamella, o Zé Canário, 55, teve a mão direita e a perna esquerda decepadas e sofreu um corte no rosto. “Dava umas duas horas da tarde e nós saímos para fazer um ritual. Tinha muita gente e começaram a atirar em nós. Me cercaram logo e deceparam meu braço com o facão terçado de cortar juquira. Eles iam cortar era meu pescoço.”

Aldeli deJesus Ribeiro (Pan Akroá-Gamella) teve os
dois pulsos cortados e reconstituídos e convive com as sequelas físicas e psicológicas

ROTEIRO DA VIOLÊNCIA

Segundo os Gamella, o ataque foi o desfecho de um longo período de hostilidades contra os indígenas perpetrado por fazendeiros, empresários, agricultores, jagunços, parlamentares, grileiros, líderes evangélicos, comerciantes e a elite política de Viana.

Deflagrada em 30 de abril de 2017, a violência reuniu quase 300 pessoas portando armas de fogo, pedaços de pau, pedras e diversos tipos de faca, facões e foices contra um grupo com cerca de 50 indígenas que fazia um ritual na Lagoa das Flores, no lugar denominado Fragati. O ataque resultou em 22 feridos, sendo dois decepados.

Uma das personagens recorrentes no relato das vítimas é o deputado Aluísio Mendes (PSC-MA), vice-líder do governo e presidente da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado na Câmara Federal.

“Ele teve participação significativa nesse conflito, porque ele repercute no parlamento aquilo que seria uma demanda legítima dos invasores, tanto grandes quanto pequenos”, apontou Kum’Tum, membro do Conselho de Lideranças dos Akroá-Gamella.

Após longas temporadas em hospitais e diversas cirurgias, os dois Gamella carregam sequelas físicas e psicológicas. Os pulsos e as pernas foram fixados com peças de platina. Aldeli Ribeiro ainda consegue varrer o terreiro em volta da casa e cuida do sítio com a ajuda de parentes. Zé Canário lamenta: “A minha vida acabou”. Não consegue mais trabalhar na roça nem pescar.

ÓDIO PELAS ONDAS DO RÁDIO

A tensão já tomava conta de Viana dias antes do ataque. Carros de som circulavam pelo município, convocando um ato público de nome “Marcha pela Paz”. Em 28 de abril, uma comissão de moradores participou de um programa na rádio Maracu AM, influente emissora na região.

Os entrevistados referiam-se a eles como “pessoas que se dizem indígenas, invadem e derrubam as casas”, “facção criminosa”, “vândalos”, “meia dúzia de malfeitores liderados por pessoas alheias à nossa região” e frases similares.

O deputado federal Aluísio Mendes participou do programa por telefone e se referiu aos Gamella como “pseudoíndios”. O parlamentar informou que estaria no dia seguinte em Viana para participar da “Marcha pela Paz” e relatou uma audiência com o então ministro da Justiça, Osmar Serraglio, na qual solicitava providências junto à Funai (Fundação Nacional do Índio) e à Polícia Federal para conter o que prenunciava como uma tragédia.

“Peço que a população não tome nenhuma medida violenta nesse momento. Eu estou pessoalmente encarregado de cobrar de todas as autoridades as responsabilidades na resolução desse fato. (…) Contem comigo”, anunciou.

No dia seguinte, já discursando no palanque da “Marcha pela Paz”, ornamentado com faixas, cartazes e claque, na localidade Santeiro, o congressista foi enfático: “Agora ninguém aqui tem sangue de barata, ninguém vai aceitar mais essa provocação”. A fala é avaliada pelos Gamella como o estopim do conflito.

Advogado e agente da Polícia Federal licenciado, Mendes foi assessor do então presidente da República José Sarney, entre 1985 a 1990, e secretário de Segurança Pública no governo de Roseana Sarney, de 2010 a 2014. Em 2018, foi reeleito deputado federal pelo Podemos.

TAB contatou a assessoria de comunicação do parlamentar. Mendes deu retorno. Sem esclarecer os fatos, recomendou apenas que a reportagem assistisse ao vídeo na íntegra e parou de responder aos questionamentos.

BRIGA POR TERRITÓRIO

Abundância de água e outros recursos naturais na Amazônia maranhense provocam conflitos entre fazendeiros e comunidades tradicionais

Os Akroá-Gamella persistem na busca pela demarcação, argumentando que seus ancestrais viviam nas terras tradicionais desde o século 18. O problema é que, a partir da década de 1960, parte do território foi comercializada em transações cartoriais suspeitas e a área passou a ser tomada.

Enquanto a regularização tramita, os indígenas fizeram a autodeclaração de povo Akroá-Gamella durante uma assembleia em 2014 e iniciaram a retomada de áreas que consideram griladas ou negociadas em compra e venda duvidosa.

Na zona rural de Viana vivem aproximadamente 1.500 indígenas aldeados nas povoações Taquaritiua, Centro do Antero, Nova Vila, Tabocal, Ribeirão e Cajueiro-Piraí, em uma área de quase 15 mil hectares.

Depois do ataque, os Gamella ocuparam a sede da Funai em São Luís, reivindicando a demarcação. Criou-se um grupo de trabalho, mas a partir da eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, todos os processos ficaram travados.

A autodeclaração é amparada na Constituição Federal de 1988, que assegura o “direito originário” dos indígenas sobre os seus territórios ancestrais, conforme o artigo 231.

Uma das batalhas será travada no STF (Supremo Tribunal Federal), quando for retomada a votação do marco temporal, uma tese da bancada ruralista segundo a qual os povos indígenas só têm direito a reivindicar determinado território se já morassem nele em 1988, data da promulgação da Constituição. O placar da votação no STF parou empatada em 1 x 1, quando o ministro Alexandre de Moraes pediu vistas do processo.

Pagé Maria Roxa, do povo Akroá-Gamella

PÉS DEMARCAM A TERRA

Enquanto a demarcação não sai do papel, a identidade da etnia vai sendo confeccionada com a retomada dos territórios, o uso sustentável dos recursos naturais e os rituais. O de São Bilibeu acentua a frase da indígena Demetriz Akroá-Gamella: “Nossa escritura são os nossos pés”.

Durante o festejo, o santo recebe doações como forma de agradecimento pelas graças alcançadas ao longo do ano, mas as oferendas precisam ser “caçadas” nas aldeias pelos “cachorros de Bilibeu” — indígenas que percorrem o terreno buscando prendas. A varredura é uma forma de demarcar o território com os pés.

Em meio aos festejos há também os lamentos. Nas memórias das vítimas permanecem cicatrizes não visíveis, decorrentes do sentimento de impunidade.

Segundo o advogado da Comissão Pastoral da Terra, Rafael Silva, não houve perícia no local. As cápsulas das balas foram extraviadas. “A ausência de perícia é um erro ou decisão de omissão”, observou. O Ministério Público Federal requisitou à Polícia Federal a instauração de inquérito. “O que a Polícia Federal fez [no início da apuração] foi transformar aquela investigação em um processo de criminalização dos Gamella”, sublinhou Silva.

O inquérito presidido pelo delegado da Polícia Federal Rodrigo Corrêa teve seu prazo encerrado, mas foi pedido mais tempo à Justiça. Segundo o delegado, houve feridos de ambos os lados e falta ouvir mais testemunhas. Para ele, não há, por ora, necessidade de ouvir Aluísio Mendes.

JUSTIÇA TARDIA

Quatro anos após o ataque, as populações locais sofreram mais violência. A Equatorial Energia tentava fincar torres na região para uma linha de distribuição. A obra fora questionada pelos Akroá-Gamella.

Em 18 de novembro de 2021, dois homens armados, a bordo de uma caminhonete, adentraram o território Taquaritiua e identificaram-se como “seguranças privados” da Equatorial. Ao perceberem o carro, os Gamella recolhiam as armas e as munições quando foram surpreendidos por viaturas e policiais efetuando prisões sem ordem judicial, disparos para o alto e uso de bombas de efeito moral. Os agentes também apreenderam celulares e uma filmadora dos indígenas.

Assessores do Conselho Indigenista Missionário e da Comissão Pastoral da Terra apuraram que as armas e a munição recolhidas eram de uso da PM, revelando a identidade dos supostos seguranças privados: PMs à paisana prestando serviço ilegal para a Equatorial Energia. Dois veículos da concessionária foram incendiados, sem identificação de autoria.

Segundo a Secretaria de Segurança Pública do Maranhão, funcionários da Equatorial Energia e policiais militares foram capturados como reféns. A SSP publicou a nota antes de coletar depoimentos.

A polícia deteve 16 pessoas sem mandado judicial nem flagrante delito, entre elas Craw Craw Akroá-Gamella, 49. Conduzidos para um posto de gasolina, eles passaram por constrangimentos, ameaças, insultos e interrogatório informal para revelarem o destino das armas recolhidas.

As práticas culturais do povo Akroá-Gamella são assunto entre adultos e jovens. Cruupoohré, na canoa, tem na lembrança as cenas de conflitos e rituais sagrados

As práticas culturais do povo Akroá-Gamella são assunto entre adultos e jovens. Cruupoohré, na canoa, tem na lembrança as cenas de conflitos e rituais sagrados

CABEÇA RASPADA

Segundo os Gamella, os policiais ofereceram liberdade a quem entregasse as armas. “Achei que ia ter uma execução de nós”, cogitou Craw Craw. Cohtap Akroá-Gamella lembra especialmente da fala de um policial. “Se as armas não aparecerem, vai ter merda!”. Em seguida, todos foram para a delegacia de Viana e depois à Vitória do Mearim.

Oito homens levados pela Polícia Civil tiveram as cabeças raspadas. No dia da soltura, todos os Gamella pelaram os cabelos em solidariedade. Os detidos foram liberados dois dias depois (20 de novembro). Conduzida pelo delegado da Polícia Civil Marcelo Magno Ferreira e Souza, a investigação foi transferida para a esfera federal e arquivada por falta de provas.

Em nota, a Equatorial afirma que atua pautada “sempre na ética e transparência”, e que tinha “licenças e autorizações para retomar a obra da Linha de Transmissão Miranda do Norte – Três Marias”. Embora o licenciamento ambiental tivesse sido suspenso em ação judicial na Justiça Federal, a Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Naturais concedeu licenciamento ambiental após a Funai autorizar as obras, mesmo sem consulta prévia aos Gamella.

Entre o silêncio do poder público e as ameaças, os Akroá-Gamella tentam gritar por socorro.

*

Reportagem produzida com apoio do Amazon Rainforest Journalism Fund (Amazon RJF), em parceria com o Pulitzer Center.

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