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A maternidade que vira praça

Obstáculos para acessar serviços de saúde são rotina para gestantes e primeira infância na periferia de São Luís

Obstáculos para acessar serviços de saúde são rotina para gestantes e primeira infância na periferia de São Luís

19/11/2020

Por: Andressa Algave

A gestante Euza Freitas, de 35 anos, pega cerca de 2 ônibus duas vezes ao mês se deslocando até a Maternidade de Alta Complexidade Marly Sarney. “Estou no quinto mês e faço o acompanhamento pela Marly Sarney, pois no meu parto pode acontecer algo inesperado. O transporte até a maternidade é bem difícil, principalmente para gestantes. Uma maternidade ou um posto mais próximo evitaria que eu me deslocasse para lugares distantes”, diz ela. Euza é uma de tantas gestantes que na pandemia do novo COVID-19 se arrisca no transporte público até o local de seus exames recomendados.

Moradora da Cidade Operária, bairro de região periférica e que também é o mais populoso da cidade, Euza percorre 6,1 quilômetros até a maternidade em que faz seu atendimento. Em 2014 teve início a construção do projeto audacioso da maternidade da Cidade Operária, obra orçada em quase 25 milhões e que se estruturaria com quatro andares, 132 leitos, destes 100 de internação e 20 UTIS. Mas o projeto foi abandonado em 2018. A obra consumiu 4 milhões para construir a base do prédio e pilares de concreto, mas depois foi interrompida por suspensão de repasses pelo Governo Federal, segundo a Secretaria Municipal de Saúde (SEMUS).

Praça que substituiu a maternidade foi orçada em 2,5 milhões. Fonte: Divulgação

Depois de anos com o terreno abandonado, o local serviu de lixão, acumulou poças de chorume, água de chuva e foi dominada por um matagal. Em 2020, a prefeitura de São Luís anunciou a construção de uma praça no local, contrariando a proposta inicial do aproveitamento de 6 mil m². A maternidade atenderia os bairros da Cidade Operária, Cidade Olímpica, Vila Flamengo, Jardim Tropical, Maiobinha e adjacentes, todos bairros periféricos, de maioria esmagadora negra e cuja renda vai até R$ 510,00, segundo o site Datapedia. Apesar da desistência da construção da maternidade, o local ainda consta no Google Maps. A construção da praça já foi iniciada, e foi orçada em 2,5 milhões.

Abordar o objetivo inicial de construção da obra é discutir a acessibilidade aos serviços de saúde públicos para gestantes e primeira infância em São Luís. Bairros populosos como a Cidade Operária, que apesar de contar com programas direcionados para a primeira infância não conseguem dar conta da demanda, são exemplos dos obstáculos na saúde pública. Dados do Ministério da Saúde em 2019 apontaram que o Maranhão possui cobertura de 84,30% de saúde básica e 2.531 Unidades Básicas de Saúde, mas o caso de Euza aponta uma sobrecarga no serviço de saúde.

Distância é obstáculo para pré-natal

O Plano Estadual pela Primeira Infância (Pepi), lançado em 2019 e assinado pelo Governo Estadual, a organização não governamental Plan International e uma série de organizações elaborou um diagnóstico da situação materna e infantil no Maranhão. O Pepi compreende toda a categoria de Primeira Infância, que vai desde a mãe gestante e o recém-nascido até crianças até 6 anos de idade, momentos de maior vulnerabilidade na vida. Conforme o documento, as taxas de mortalidade infantil cujo componente mais relevante é o neonatal precoce, apontam para um problema na assistência de saúde para a mãe e o bebê, na gestação, parto e para recém-nascidos. No caso das gestantes, entre 2015 e 2017 houve aumento do parto cesariano, considerado de maior risco, parcialmente por condutas desnecessárias e pouco humanizadas ao dar à luz. Atualmente, segundo o site oficial da Secretaria Municipal de Saúde, apenas a maternidade Benedito Leite oferece o parto humanizado na cidade de São Luís.

“Temos muita dificuldade em auxiliar a gestante desde o início da gravidez,” diz Silvia Martins, técnica em enfermagem e agente pública de saúde em São Luís. “As meninas sempre chegam no posto quando já se passou um tempo de gestação. Muitas vacinas são aplicadas de forma tardia”. Além disso, há o problema com a disponibilidade de serviços. “A abrangência de serviços é ruim. Muitas maternidades só aceitam fazer o atendimento se a gestante fizer o acompanhamento na maternidade mesmo, e o problema é: a maternidade não suporta todas”. Segundo a técnica, nem sempre fazer o acompanhamento na maternidade garante a vaga para o parto. Em matéria para o jornal O Estado, a estudante universitária Taiane Rodrigues conta que teve o bebê em casa após ter o pré-natal cancelado por uma maternidade pública no município. “Além disso, a situação é muito complicada na Cidade Operária pois há muita demanda. Daí essas pessoas precisam vir para os postos de saúde de outros bairros, alguns com suporte muito fraco”, diz Silvia.

Carla Raquel, também moradora da Cidade Operária, percorria 14 quilômetros uma vez ao mês até uma clínica particular no bairro da Areinha, região central de São Luís, para fazer o pré-natal. Ainda que com a facilidade do transporte particular, o gasto com gasolina, medicamentos e consultas pesou o bolso. Recorrer para o serviço privado se tornou uma alternativa custosa mas necessária para obter serviços de saúde rápidos, especialmente no contexto de pandemia.

Segundo dados do documento Espacialização das Empresas em São Luís, disponível online pelo site do Instituto Maranhense de Estudos Socioeconômicos e Cartográficos (IMESC), no bairro existem 901 empresas ativas. Apesar do crescente desenvolvimento econômico no bairro, esse crescimento resulta em uma alta demanda populacional. Com população de quase 40 mil pessoas e, sem a disponibilidade de serviços de saúde abrangentes públicos locais, se torna região de preferência para serviços de saúde privados. Somente na avenida 203 e proximidades imediatas, área de concentração comercial, existem cinco clínicas médicas privadas com especialidades.

Direitos da gestante e da primeira infância

Segundo o Diagnóstico Situacional Regionalizado, também disponível pelo site do IMESC, a cobertura de agentes de saúde e de programas de saúde da família na região metropolitana de São Luís é a menor do estado, com 57% e 51%, respectivamente. A pediatra e especialista em saúde do Fundo Internacional das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) Francisca Maria aponta que as políticas públicas referentes a saúde são um trabalho intersetorial. “O apoio à gestante de alta vulnerabilidade (baixa renda) faz parte de uma política pública com bom funcionamento. Programas de transferência de renda influenciam fatores como a nutrição, e, portanto, a saúde”. No Maranhão há a iniciativa Cheque Gestante, uma parceria entre o Governo do Estado e dos municípios para oferecer nove parcelas de R$ 100,00 para gestantes de baixa renda. O cadastro está disponível para mulheres grávidas de até três meses, cadastradas no CadÚnico e com renda familiar de até 1 salário mínimo.

A pediatra também reforça o papel da ação conjunta do governo e da população para o bom funcionamento dos programas de saúde. “A população deve conhecer seus direitos, e a prefeitura deve desenvolver essas políticas de forma adequada, com planejamento, políticas públicas de qualidade, postos de saúde próximos à casa da família, profissionais bem capacitados, com serviço de boa qualidade técnica e humanizado. A população também deve exigir os direitos e participar da gestão dos programas através dos conselhos”, diz ela. O Conselho Municipal de Saúde é responsável pela fiscalização e poder de decisão popular nas questões públicas de saúde municipal em São Luís e é composto por 50% de usuários do SUS, 25% de profissionais de saúde e 25% de representantes do governo.

A chefe da UNICEF no Maranhão, Ofelia Silva, falou sobre a importância da manutenção da saúde de moradores da periferia e os esforços da instituição pela primeira infância. “Em todas as áreas geográficas onde vivem populações em condições de vulnerabilidade é importante que os programas de atenção primária sejam fortalecidos e desenvolvidos. Que as equipes sejam treinadas e a população seja estimulada e engajada para buscar acesso e assegurar a sua interação com esses programas”. Ela cita medidas como o Lar Calábria, iniciativa do Unicef que dispõe serviços de saúde para pessoas em vulnerabilidade. “Existe um esforço contínuo de melhorar a atenção primária de saúde e oferecer o primeiro cuidado para a população em sua questão mais básica e estruturante”.

A moradora Euza diz que sentiu dificuldades para obter informações nas recepções dos postos de saúde, apesar dos programas. “Obtive serviços da UPA para fazer um ultrassom, mas porque consegui um encaminhamento e orientações do médico do prédio para procurar um ultrassom lá. Na recepção, fui informada que deveria fazer a ultrassom na maternidade, não lá. No fim consegui o exame, mas a informação repassada foi ruim”, disse ela.

“É muito importante que a população possua a informação sobre seus direitos” diz a pediatra Francisca. “A população precisa saber dos seus direitos à educação, saúde, assistência social, infraestrutura, para se manterem saudáveis. A saúde é influenciada por muitos fatores, com menos educação, renda e baixo acesso a alimentação nutritiva não há saúde. Damos ênfase a gestantes, crianças e adolescentes pois são prioridade, mas é importante que haja uma democratização desses direitos”.

Até a data de conclusão da reportagem, a Secretaria Municipal de Saúde (SEMUS) não
respondeu às tentativas de contato.

*Essa reportagem foi produzida com o apoio da Énois Laboratório de Jornalismo, por
meio do projeto Jornalismo e Território.

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