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Fui vítima de racismo e violência policial

Marcela Tavares*

A relação intrínseca entre o racismo institucional e a violência policial vem sendo denunciada pelo movimento negro através de pensadores como Abdias Nascimento. Se os rappers já disseram que os cassetetes são açoites e os camburões são tumbeiros, a cor que honrosamente nos habita o corpo e a alma, expressão de nossa gênese como africanos e africanas em diáspora, continua nos distinguindo como alvos de todas as opressões que ao longo do transcurso dos séculos o patriarcado, o colonialismo, o sexismo e outras mazelas que se interseccionam, tem se socorrido para nos negar o direito de existir.

A verdade da escravidão negra se protrai no tempo e a maléfica herança antevista por Joaquim Nabuco nos chega nas abordagens policiais truculentas e nós descendentes de reis e princesas, recebemos como legatários de tragédias o cabedal do racismo institucional, indesejada herança.

No dia 23/ 07, um dia após celebrarmos o Dia Internacional da Mulher Negra Afro Latino Americana e Caribenha na sede da OAB, experienciei a colérica manifestação da violência policial, esta que dizima meu povo e consoante dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2021, pessoas negras representam 78,9% das vítimas de intervenção policial.

A abordagem eivada de desmedida grosseria transcorrera entre 14:47 às 16h na presença de minhas duas filhas, crianças que tiveram sua integridade emocional violada e ainda hoje choram traumatizadas pela exposição que sofreram, vergastadas pelo açoite que secularmente abre chagas na epiderme de nosso corpo e nossa alma.

Eu saíra do estacionamento e a dez metros fizera uma breve parada para minha irmã, com o pisca alerta ligado, neste momento três policiais em duas motos pararam ao meu lado e arrogantemente ordenaram, que eu retirasse o veículo dali, solicitei que me tratassem com cordialidade, pois eu só estava a aguardar minha irmã que já estava ali, próximo ao carro, reiterei que o agente de segurança pública se reportasse respeitosamente e este, enraivecido, determinara impositivamente que eu descesse do veículo e apresentasse a Carteira Nacional de Habilitação e todos os documentos pessoais sem fundado motivo que justificasse o ato. Os agentes de segurança pública ligaram para o DETRAN, posto que eu não portava os prefalados documentos concernentes ao veículo e mesmo após se cientificarem que tudo estava regularmente correto, não fui liberada, permaneci sob o sol inclemente com duas crianças a chorar, perguntando se eu seria conduzida à delegacia.

Como se não bastasse, os três policiais se afastaram e passaram a imputar-me vários delitos, solicitando reforços como se estivessem diante de uma pessoa sobre quem pesava o julgo de inúmeros crimes, chegaram uma viatura e duas motos transportando outros agentes de segurança pública e após saberem que estavam diante de uma advogada, os policiais retiraram de sua autuação os supraditos delitos e constaram apenas a infração de transportar uma criança sem cadeirinha, negando-se os policiais a consignar a idade das crianças em sua autuação, não a assinei e assim, após uma hora e dezesseis minutos fui liberada.

As fotos e vídeos que realizei constituem lastro probatório que atesta o quanto precisamos avançar no combate ao racismo estrutural que se institucionaliza em práticas nefastas de um necropoder sedento de nosso sangue e faminto por nossos corpos molestados pelas tantas violências que nos açoitam.

Defendemos uma segurança cidadã, que respeite protocolos internacionais de abordagem, que seja um instrumento republicano de promoção da igualdade racial e não reproduza a perpetuidade dos massacres que nos destroem nas periferias socais e existenciais do país, lutemos contra todas as formas de violência simbólica, política, ambiental, epistêmica e institucional que se impõe contra o povo negro, pois restabelecer a verdade acerca da escravidão é reconstruir nossas sociabilidades com respeito às garantias e direitos fundamentais que assistem à todas, todos e todxs os cidadãos brasileiros.

Um dia após a data mais importante do mês de julho das pretas, o Dia de Tereza de Benguela, eu queria trazer uma matéria de celebração à nossa história, ancestralidade e contributo à cultura brasileira, mas, o racismo estrutural me ferira na antevéspera desta data tão importante, o que sinaliza na direção de que resistir e clamar por justiça, lutar com todas as armas que a democracia permite é o caminho para um novo país, esta república inacabada, edificada sobre a vergasta da escravidão negra e o genocídio dos povos da floresta.

Sofri na pele as opressões que o capitalismo racista impiedosamente impõe com mais crueldade às mulheres pretas. Para tornar-me advogada, vendi lanche nas ruas de São Luís, em coletivos e na própria faculdade para custear os estudos, conciliei o curso de Direito com a responsabilidade de criar e educar duas filhas pequenas, comecei a trabalhar muito cedo para somar à economia doméstica e adentrava as madrugadas a estudar, pois só restava a alta noite indormida para ler após os dias sempre cansativos de muito sacrifício sob o sol, sob a chuva. Realidade de tantas jovens pretas, que mesmo em suas vias crucis ainda são exceção pois a maioria de nós nem mesmo consegue chegar à universidade, por vezes chegam, em empregos subalternizados, não nos bancos das salas de aula como estudantes.

Existe uma canção de Emicida que diz “eles querem que alguém que vem de onde nós vem/ seja mais humilde, baixe a cabeça, nunca revide, finja que esqueceu a coisa toda.” Não nos calarão, todas as medidas judiciais cabíveis serão encaminhadas e nosso povo preto continuará a brilhar, nas universidades, na ciência, nas artes, na cultura, chegamos até aqui porque nossos passos vêm do berço do mundo, mamãe África nos deu régua e compasso para reconstruirmos nossa felicidade onde estejamos e Tereza de Benguela que hoje celebramos nos educara nos caminhos do aquilombamento que nenhum cassetete, coturno ou camburão poderão acrisolar. Ubuntu! Viva as mulheres latino americanas e caribenhas!

*Marcela Tavares é advogada criminalista.

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Marcela Tavares

Isso é uma falta de respeito com minha pessoa

Daniele Estrela

Que orgulho da sua trajetória amiga. Chorando estou ao ler o seu relato, sabendo q vc foi vítima de uma arbitrariedade dessas. Mas como sempre, vc ressignificou da melhor forma q poderia e ainda explanou sua história para que sirva de exemplo para os demais. Parabéns dra. Marcela. Vc é top.


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