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No tempo do Bumba-boi

Foto: Reprodução

Por Letícia Cardoso*

Em São Luís, o Bumba meu boi constitui uma festa estruturante de um antes e depois. De tão forte que é tem servido de demarcação temporal na vida das pessoas, atravessando a percepção cronológica e as barreiras de classes sociais.

Por aqui, o mês de junho não é apenas um dos doze elementos do calendário gregoriano, mas o tempo de Bumba-boi, época em que a cidade se transforma num grande arraial e sua rotina se adapta ao bom desenvolvimento das festividades, agregando fraternalmente além do boi, as práticas de tambor de crioula, cacuriá, caroço, coco, quadrilha, lelê, entre outras danças que compõem o cenário de encantarias. Coisas estranhas e bonitas acontecem no tempo do Bumba-boi.

Em tempo de Bumba-boi, o trânsito urbano é modificado em vias estratégicas em função dos protagonistas da festa; os dias 29 (de São Pedro) e 30 de junho (de São Marçal), datas que encerram o festejo, acabam sendo feriados municipais (30 é facultativo nos órgãos públicos).

Moradores da cidade e turistas se misturam; mestiçam-se também, embora apenas na paisagem, trabalhadores de toda ordem, lavradores e empresários, assalariados e abastados, travestidos pela cachaça e pelos enfeites, com chapéus e roupas coloridas.

O boi se torna um espaço de contato entre as classes sociais. Nesse tempo de festa, o riso, a diversão, a fantasia e o prazer subvertem a ordem, mas não eliminam as desigualdades sociais. A festa é, assim, uma continuidade do cotidiano dos brincantes do Boi, mas pode servir para que a sociedade se abra a “uma visão alternativa de si mesma”, diria o antropólogo brasileiro Roberto DaMatta (1981).

As cerimônias e os rituais do Bumba-boi são atos comunicacionais, tendo brincantes e público como participantes do processo. E através do ritual participatório do Bumba-boi os sujeitos geram, mantêm e transformam a cultura em que vivem. Seja para lidar melhor com o passado, para inverter ordens tradicionais, para mostrar o prazer de viver, para criar uma outra visão sobre si, para estreitar laços afetivos ou para reivindicar questões sociais.

Eles falam com a sociedade e permitem um diálogo entre produtores e consumidores, elites e subalternos. De acordo com o autor colombiano Martín-Barbero (1998), as festas são um “espaço onde as classes sociais se encontram – compartilham significantes – e lutam por e a partir de significados diferentes, para dotar a festa de sentido”.

Como ato comunicacional que é, a festa do Boi possibilita uma interação entre as classes sociais, notada no contato entre produtores, brincantes, assistência, turistas e consumidores em geral, mediadas por diversas ritualidades.

Por exemplo, o empréstimo de matracas e pandeirões pelos brincantes são elementos de ingresso ou de pertencimento, ainda que temporário, a um grupo de boi e podem representar uma negociação simbólica das lutas de classes cotidianas, base de toda manifestação de cultura popular.

É por isso que o Boi de Guimarães, brincadeira de preto quilombola, ocupa protagonismo no espaço público com suas denúncias sociais: “Assim não dá não. Tão roubando o país, quem sofre é a população.

O pobre só tem valor com seu título de eleitor, no tempo da eleição”, alega o cantador, frequentemente aplaudido por uma assistência heterogênea. A arte e a política vivem juntas no tempo do Bumba-boi!

As ruas viram espaços lúdicos de encantamento a céu aberto com a presença de fogueiras, bandeirinhas e brincantes surgindo de todo lugar, às vezes, dormindo nas calçadas e praças, vencidos pelo cansaço.

Também ficam mais movimentadas com a circulação de frotas extras de caminhões e ônibus, ao anunciarem que um Boi está chegando ou partindo.

Muitos desses grupos vindos do interior do Estado, transportando os batalhões que, mesmo em movimento, puxam toadas e tocam os instrumentos para não deixar a animação do grupo arrefecer, varando a madrugada, como propõe Santa Fé com seus versos “Eu sou guerreiro, eu sou valente. Eu venho de São Vicente. Minha aldeia é no tabocal. Não adianta querer, nem insistir nem brigar. Não adianta querer, não vai aprender copiar. É tchun, tchan, é tchun, é tchun, é tchan, eu vou até de manhã!”.

A força transformadora do povo trabalhador se renova no tempo do Bumba-boi!

As imagens proporcionadas pela estética psicodélica do boi, as cantorias e as batucadas que levam ao transe deixam a cidade mais cheia de vida, nos bairros, nas praças, nas casas, no comércio, na mídia, nas redes digitais. Já teve época diferente de bumba-boi, em que os brincantes precisavam pedir favor a políticos e empresários para não serem presos. O presente é tempo de se brincar não apenas por devoção e por gosto, porque o “Boi tem que ser mais sofisticado”, nas palavras do saudoso mestre Marcelino Azevedo.

É o momento de se preocupar também com as expectativas do contratante e do espectador. Na atualidade, é preciso buscar o sucesso do grupo, aprimorar a performance, caprichar na estética das danças e indumentárias.

Hoje, é impossível não perceber as campanhas publicitárias, em outdoors, rádio e tv, apropriando-se do boi para agregar valor a seus produtos. Quem não brinca boi, também ganha com ele: vende cerveja, comida típica, churrasquinho, pipoca, bombinhas, foguetes, há toda uma economia informal que alimenta a festa, os brincantes e as famílias dos comerciantes sazonais do tempo do Bumba-boi.

É tempo de assumir mais responsabilidades e cumprir novos compromissos ligados ao dinheiro, à política, à indústria cultural, ao turismo e às expectativas da identidade nacional. Mas, continua sendo tempo de reverência aos antepassados e de “se apegar a São João pra sair do sufoco”.

A entrada do Boi no espaço da mídia, do turismo e do comércio não significou perda de tradição e de devoção. Reconfigurou, sim, seu processo produtivo ao atualizar seus compromissos antigos, traduzindo suas práticas para o mundo contemporâneo. A cultura é dinâmica e fonte de geração de renda no tempo de bumba-boi!

O boi afeta mesmo os que se dizem indiferentes, seja nas filas de supermercado, quando ouvem e cantarolam os emblemáticos versos de Chagas: “Se não existisse o sol como seria pra terra se aquecer, e se não existisse o mar como seria pra natureza sobreviver”. Seja, quando alguma toada de Humberto do Maracanã toca no rádio ou é aclamada em espetáculos nacionais e internacionais.

Maranhense nem precisa gostar de bumba-boi pra conhecer alguns trechos da toada “Maranhão, meu tesouro, meu torrão. Fiz essa toada pra ti, Maranhão. (…) E essa herança foi deixada por nossos avós. Hoje, cultivada por nós pra compor tua história, Maranhão”. Quando Mestre Humberto a declamou num festival de música em 1986 não supunha que seus versos se tornariam patrimônio imaterial do Estado, nem que contribuiria para construir a minha identidade e de tantos maranhenses.

Pelo meu olhar é assim o tempo do bumba-boi!

*Letícia Cardoso é professora, doutora em comunicação social, boieira e coureira.

São Luís, 27/06/2022

Véspera da véspera de São Pedro, após 2 anos sem a realização da festa.

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Rita de Cássia Martins Ferreira

Parabéns minha leleca,como é lindo de se vê o seu amor pela nossa cultura maranhense!
texto lindo!

Eliane Moreira Lima Salgado

Parabéns Letícia! Excelente texto! 👏👏👏👏

Maria Goreth Coelho Martins

Maravilhoso descrever Dra Letícia minha sobrinha com muito orgulho. Me emocionei várias vêzes, saudades de minha Terra, dessa cultura tão linda. Obrígada.

Rosinha

Excelente texto!


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