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QUEM PRECISA DE PLANO DIRETOR EM SÃO LUÍS?

Luiz Eduardo Neves dos Santos

Geógrafo, professor da UFMA e membro do Movimento de Defesa da Ilha (MDI).


De forma bem objetiva, o Plano Diretor é uma lei municipal, produzida pelo poder executivo (Prefeitura) aprovada pelo pode legislativo (Câmara de Vereadores), que estabelece regras, parâmetros, incentivos e instrumentos para o desenvolvimento e a expansão de uma cidade. Ele é o principal marco legal de planejamento urbano no Brasil. Remonta o período da ditadura civil-militar, mas ganha maior importância com a inclusão dos artigos 182 e 183 na Constituição de 1988, regulamentados pelo Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257 de 2001).

O Estatuto da Cidade fala em função social da cidade e da propriedade, um princípio constitucional que propõe a priorização dos interesses coletivos em relação aos interesses individuais ao colocar a cidade como um bem comum, fruto do esforço da sociedade como um todo, ainda mais com o dispositivo para a participação da sociedade civil no processo. No caso da função social da propriedade, donos de imóveis devem zelar pelo bom uso de seu patrimônio de forma a considerar interesses sociais, culturais e ambientais para o coletivo.

Mas a cidade capitalista é um espaço de disputas, ela é tanto uma mercadoria valiosa para certos grupos quanto um território de vivências e existências para outros sujeitos, por isso a construção e o debate das propostas de planos diretores no Brasil é sempre permeada por tensões, combates discursivos, ideológicos e brigas na justiça entre diferentes agentes sociais, que olham para o espaço urbano de perspectivas muito diversas.

São Luís não foge à regra, olhando para a História, o Plano Diretor enquanto ferramenta jurídica possibilitou à cidade certo grau de desenvolvimento e expansão. Em 1975 com o prefeito Haroldo Tavares traçou um plano viário que permitiu a expansão ludovicense para além dos rios Anil e Bacanga, estabelecendo regras para a ocupação de novos conjuntos habitacionais e a nova localização do porto que acabara de sair da Praia Grande, se adequando ao projeto desenvolvimentista do país liderado pelos militares. Em 1992, na gestão Jackson Lago, o Plano Diretor diversificou a malha viária, delimitou as Zonas de Interesse Social (ZIS) e deu as condições necessárias para um processo de verticalização na cidade, do qual o bairro do Renascença é o exemplo mais emblemático.

Em 2006, pós-Estatuto da Cidade, a legislação urbana foi elaborada na esteira da campanha Nacional dos Planos Diretores, na primeira gestão Lula (2003-2006), e teve na participação social seu ponto alto, muito embora, na prática, sua construção tivesse ainda um caráter essencialmente técnico e instrumental, longe da compreensão da maioria dos habitantes de São Luís, justamente porque a concepção de planejamento urbano por parte de seus idealizadores ainda era baseada na arrogância de um suposto saber competente. Desta forma, o Plano Diretor ainda vigente em São Luís se transformou em documento genérico, inócuo, sem efetividade e dependente de leis complementares que nunca vingaram, a exemplo da Lei de Zoneamento, atrasada há três décadas.

A revisão do atual Plano Diretor de São Luís se arrasta desde 2014, quando a prefeitura e o Instituto da Cidade (INCID) apareceram com a proposta de fazer pequenos ajustes nos Macrozoneamentos Ambiental e Urbano, e apresentar a minuta do anteprojeto de lei que estabelecia normas para o Zoneamento, parcelamento, uso e ocupação do solo no município, algo detalhado em uma audiência pública em junho de 2015 nas dependências da Faculdade UNDB, organizada pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU-MA) e pelo Ministério Público Estadual (MPE), seguido da previsão da realização de mais 15 audiências por pressão popular, pois estavam previstas apenas 8 consultas públicas.

O processo seguiu com vícios, ilegalidades e pouca participação popular, fazendo com que o Ministério Público, a partir de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Executivo Municipal, recomendasse a separação das revisões dos processos do Plano Diretor e do Zoneamento. Durante todo o ano de 2018 a nova proposta foi construída com 41 reuniões no Conselho da Cidade (CONCID) e mais 2 oficinas de capacitação. Em janeiro e fevereiro de 2019 foram realizadas 9 audiências públicas nas zonas urbana e rural.

Depois das reuniões técnicas no CONCID, oficinas de capacitação e audiências públicas, a proposta apresentada foi enviada à Câmara Municipal em junho de 2019 com uma série de pontos polêmicos e questionáveis, como a supressão do território de dunas no litoral norte e também das áreas de recarga de aquíferos, da mudança de função de metade do Sítio Santa Eulália (transformado para macrozona em consolidação 1) e da expansão substancial de territórios urbanos em detrimento de áreas rurais, para atender os interesses corporativos industriais e portuários, num espaço que abrange dezenas de comunidades, como a do Cajueiro, objeto de arbitrariedades provenientes dos poderes públicos e da justiça. 

No início de 2020, a Câmara Municipal votaria a proposta, momento em que o MPE envia, no dia 27 de fevereiro daquele ano, um documento de 14 páginas com recomendações ao legislativo municipal sobre o projeto. Tal documento se baseia em medidas legais – amparadas pelo Estatuto da Cidade – no qual a proposta não se adequava, que dentre outras questões, apresenta equívocos e omissões no que tange aos mapas de macrozoneamento (ambiental e urbano), nos errantes recortes das dunas e suas novas delimitações e na considerável expansão do perímetro urbano sem os devidos estudos técnicos, ferindo os artigos 42-A e 42-B do Estatuto da Cidade, configurando grave omissão técnica pelo executivo municipal. Portanto, a recomendação era para que o projeto retornasse ao executivo municipal a fim de passar por correções, e que fossem observadas regras de controle social, com o crivo do CONCID, sob pena de ajuizamento.

No ínterim entre a recomendação e o início do período legislativo, veio a pandemia, mas a Câmara enviou uma notificação à prefeitura sobre o documento do MPE e, ao que se sabe, o executivo municipal silenciou. Em novembro de 2020, Eduardo Braide foi eleito para o Palácio La Ravardière e em fevereiro de 2021, via decreto, prorrogou o mandato dos conselheiros da cidade por 1 ano ad referendum, de forma arbitrária, sem fazer quaisquer consultas aos seus membros.

Durante o ano de 2021 nada foi dito pelo prefeito sobre o Plano Diretor. Somente no dia 5 de abril de 2022, nas dependências da prefeitura, Eduardo Braide se manifesta sobre a proposta, chamando-a de “Novo Plano Diretor de São Luís” e a apresenta para um público seleto junto com a presidente do INCID, Érica Garrêto, a exemplo do presidente da Câmara à época, Osmar Filho, de Edilson Baldez das Neves (presidente da FIEMA) e do vice-presidente do setor de relações de trabalho do SINDUSCON, Celso Gonçalo. Tal apresentação foi transmitida pelas redes sociais da prefeitura, durou 10 minutos e, segundo o prefeito, este foi um dia muito esperado pela cidade de São Luís.

O que chamou atenção de cara foi que o gestor municipal afirmou que a proposta se encontrava na Câmara, de lá nunca teria saído, mas mesmo assim a prefeitura estava trabalhando nela, isto já aponta uma primeira inconformidade com a recomendação do MPE. Além disso, duas questões básicas estavam na explanação do prefeito e, que, segundo ele, se referiam às adequações requeridas pelo MPE. A primeira era a delimitação das áreas de risco no município e a segunda a questão do perímetro urbano.

Em relação a delimitação das áreas de riscos, a recomendação de fato faz essa cobrança em seu item 8.1 e a explanação do chefe do executivo municipal citou as fontes para a elaboração do mapa, os dados do Serviço Geológico do Brasil e o Relatório de Áreas de Riscos de São Luís de 2021 elaborado pela Defesa Civil, mas não deu maiores detalhes sobre os critérios de escolha dessas áreas ou as definições do que seria “risco”.

No que se refere ao perímetro urbano, Eduardo Braide afirmou que a prefeitura fez uma re-análise respondendo às manifestações das audiências públicas, restabelecendo assim 22 localidades que haviam perdido o status de rural na proposta de 2019. Mencionando as fontes, Braide disse que a metodologia se deu a partir de imagens de satélite, dados do INCID, da SEMURH, da SEMAPA e do SEBRAE.

O que o prefeito omitiu foi que na 43ª reunião extraodinária do CONCID, realizada em 2 de abril de 2019, o INCID elaborou um mapa urbano-rural com base nas reivindicações massivas dos habitantes da zona rural e de outros sujeitos presentes nas audiências públicas e que foi derrotada pelos votos combinados entre os integrantes do poder público e os representantes do mercado imobiliário na reunião de maior quorum entre todas as 45 reuniões analisadas sobre a construção da proposta. Tal mapa deixava preservados os territórios hoje rurais que estão sendo objeto de desejo para o mercado construtor local, em virtude da instalação futura de um terminal portuário de uso privado, o Porto São Luís.

Por isso, a segurança jurídica é imprescindível para a indústria da construção civil, algo mencionado por Eduardo Braide quando da sua explanação ao usar a expressão “nossa FIEMA”, de que as áreas destinadas ao retroporto e outros territórios de interesse industrial foram preservadas para garantir o desenvolvimento de São Luís. No caso do Plano Diretor, o gestor municipal repete o mantra dos liberais: “vamos gerar emprego e renda, garantindo desenvolvimento com equilíbrio em São Luís”, ou seja, na prática ele defende ideias e políticas que atendem aos interesses de mercado, mas trata de fazer sua imagem brilhar nas redes sociais, como gestor trabalhador, preocupado com a população, utilizando justificativas em tom apelativo, que incluem vídeos ao vivo para além do expediente de trabalho.

A Câmara de Vereadores de São Luís segue o mesmo padrão do prefeito Eduardo Braide, com a diferença de que na ‘casa do povo’ o descaso e a impassibilidade com a proposta salta aos olhos, com algumas exceções, justifico o porquê: desde junho de 2019, quando o projeto chega aos legisladores municipais ele não é objeto de interesse e estudo, é só consultar, por exemplo, as listas de presença das 8 audiências públicas organizadas pela própria Câmara no fim de 2019, nelas, a baixa frequência de vereadores foi a tônica, uma média de 7 vereadores por audiência, sendo que o número total deles é de 31. Além disso, de lá pra cá, mesmo com uma nova legislatura, ao que se sabe, a maioria dos legisladores não se apropriou da proposta, que ficou engavetada e silenciada pelos nobres representantes do povo no parlamento municipal.

Somente em 11 de janeiro de 2023, foi designado pelo presidente da Câmara Municipal de São Luís, Paulo Victor, uma Comissão de Recesso para, segundo o próprio site da Câmara, dar início a apreciação do documento da proposta. A comissão é composta pelos vereadores Aldir Júnior, Astro de Ogum, Dr. Gutemberg, Chaguinhas, Gaguinho e Jhonatan (Coletivo Nós), que por sua vez, fizeram algumas reuniões públicas, chamando-as de “audiências”. A maioria dos integrantes deste grupo está sendo assessorado tecnicamente pelos velhos conhecidos representantes do mercado construtor e imobiliário e, por mais que o discurso dos vereadores seja repleto de boas intenções, fica muito claro que a proposta será aprovada nos primeiros dias, ainda no mês de fevereiro.

Avalio como perniciosa esta proposta do Plano Diretor para São Luís, sobretudo porque ela não está articulada às políticas fundiárias e a um processo verdadeiramente participativo, o que enseja implicações no mau uso do solo urbano, contribuindo para um quadro cada vez mais acentuado de precariedade, insalubridade, clandestinidade e insegurança para mais de 100 mil famílias no município que vivem amontoadas em habitações denominadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de aglomerados subnormais, suscetíveis à alagamentos, enchentes e deslizamentos. Estas áreas não possuem a segurança jurídica que a FIEMA e o SINDUSCON tanto reivindicam no projeto para as novas áreas urbanas, que segundo eles, servirá para trazer desenvolvimento ao território ludovicense.

Há outro problema, os planejadores urbanos em São Luís possuem (ou fingem possuir) uma crença excessiva de que o aparato jurídico é suficiente para alcançar conquistas sociais no espaço urbano, mas a realidade é outra, à medida que o acesso à terra urbanizada no Brasil e em São Luís continua desigual, comandada pelo mercado imobiliário, que conta com este aparato legal a seu favor.

O Plano Diretor e seus instrumentos tem se caracterizado pela sua não aplicabilidade quando é para afetar positivamente os excluídos e espoliados urbanos. Na prática, eles se aplicam para atender interesses econômicos que, amiúde, são carregados com o discurso dominante de modernidade, prosperidade, progresso e desenvolvimento, como temos visto recorrentemente os apologistas desta proposta dizer. Aliás, a palavra “desenvolvimento” na proposta atual de revisão do Plano Diretor de São Luís – como já alertei outras vezes – aparece 89 vezes! Sempre acompanhada de sobrenomes para tentar diferenciá-la ou incluir formas de melhorar seu enunciado. Aparecem as seguintes palavras depois de “desenvolvimento”: urbano, rural, sustentável, econômico, local, social. A pergunta que se faz é que desenvolvimento é esse? Para que e para quem?

A ideia de ‘desenvolvimento’ e sua disseminação faz parte de um grande projeto da classe capitalista, uma racionalidade que organiza e estrutura a ação tanto do poder econômico e político, quanto a conduta dos seus explorados e excluídos. O desenvolvimento justifica seus meios e fracassos, por vezes aceitamos as regras do vale tudo. Tudo é tolerado na luta para deixar o subdesenvolvimento em busca do progresso. Nesta perspectiva, a receita de desenvolvimento é benéfica para os povos, mas na realidade ela esconde a imensa concentração de riqueza, renda e patrimônio no mundo e a aliança indissociável entre os poderes econômico e político, como tão bem analisou Thomas Piketty em sua famigerada obra “O Capital no Século XXI”.

Destarte, para a aprovação do Plano Diretor, é preciso vender a imagem de São Luís como uma cidade portuária, que tem potencialidades naturais e localização privilegiada propícias à lógica mercantil de escoamento de commodities para o mercado internacional – este entendimento deve ser evocado por diversos vereadores quando da votação da proposta nos próximos dias. Para atender a esse objetivo, é essencial a aprovação de sua lei complementar, o Zoneamento, que permitirá que São Luís intensifique o uso do solo pela ocupação de áreas e territórios ociosos, saindo de sua condição de “imutabilidade”, a de uma cidade que se recusa a prosperar, como dizem alguns.

Por fim, volto a pergunta do título do texto: quem precisa de Plano Diretor em São Luís? Da forma que a proposta se apresenta, certamente os grandes empresários do ramo imobiliário e da indústria da construção civil. Quanto mais burocrático, técnico e instrumental for o Plano Diretor, melhor para esses setores, pois dificulta a compreensão da lei pela maior parte da população da ilha, que fica suscetível de cair nas armadilhas do discurso utilitarista do desenvolvimento. Nossa tarefa é denunciar todas as mazelas e tentativas de destruição que este Plano Diretor carrega, sobretudo no que tange às ameaças aos grupos sociais que vivem e precisam dos rios, do mar, dos manguezais, das florestas, dos aquíferos, da boa qualidade do ar que se respira, de água nas suas torneiras e do solo que se planta. Que possamos continuar lutando e resistindo contra todos aqueles que colocam seus negócios, seus lucros e seu poder acima do bem coletivo e da vida dos grupos subalternos.

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Luiz Eduardo Neves dos Santos

Geógrafo, professor da UFMA e membro do Movimento de Defesa da Ilha (MDI).

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