Nila Michele
Neste ano de Bicentenários — que celebram a adesão do Maranhão à independência e o nascimento do poeta Gonçalves Dias — notamos a exaltação midiática e histórica de figuras notáveis, sendo celebradas e homenageadas. Sem dúvida, seus nomes tiveram importância e seus feitos e registros históricos trazem grandes contribuições. No entanto, a História não é apenas composta por heróis e ídolos.
Ela está repleta de personagens anônimos, pessoas humildes e oprimidas que travavam batalhas diárias nas quais, provavelmente, a única esperança de vitória era a sobrevivência. Embora, em muitos casos, até esta eram lhes roubadas.
Comumente, vemos como diversas pessoas foram invisibilizadas nas narrativas históricas devido à classe social, à cor, à sexualidade e ao gênero. Suas vidas passam despercebidas, quando não marginalizadas em suas próprias histórias. Neste mês de agosto, temos um emblemático exemplo.
No 14 de agosto de 2023, completaram-se exatos 150 anos do assassinato de Maria da Conceição de Carvalho. Mas quem é essa? Muitos podem se perguntar.
Maria foi mais uma jovem que, devido ao seu gênero, classe social e vulnerabilidade, não teve o direito de assumir o papel de protagonista nem mesmo na história do seu próprio assassinato. “O horroroso crime”, como os jornais noticiavam em 1873, foi registrado como o Crime do desembargador Pontes Visgueiro.
Visgueiro era um homem sexagenário, que, ao se apaixonar por uma jovem prostituta de aproximadamente 15 ou 16 anos, não admitiu a perda do poder que acreditava ter sobre ela. Assim, ele premeditou o crime, enganando-a para visitar sua residência, um sobrado azulejado localizado na rua São João, em São Luís – MA, onde, com a ajuda de um cúmplice, ela foi dopada, esfaqueada, esquartejada e colocada em um baú, que mandou enterrar no quintal de seu sobrado.
Seria mais um crime cuja posição social, o dinheiro e o gênero não permitiriam suspeitas, se não fosse pela insistência da mãe, irmã, comadres e amigas em não aceitarem o desaparecimento de Maria.
Por quatro dias seguidos, elas não descansaram ou desistiram, procurando em todos os lugares, divulgando o desaparecimento e levantando suspeitas de que o desembargador havia causado algum dano à jovem. Suas ações foram tantas que conseguiram que o delegado investigasse.
Descoberto o crime, a vítima tornou-se a ré, culpada de seu próprio infortúnio e acusada de ser responsável por seduzir o “pobre desembargador”, que enlouqueceu por amor. Ela foi constantemente revitimizada, difamada e apelidada de DEVASSA.
Mariquinhas, como era conhecida, assim como tantas mulheres de hoje, vítimas de seus companheiros, possessivos que não aceitam perder o que consideram uma propriedade sua por direito, sofreu, mesmo de modo póstumo, todas as mazelas do julgamento social.
No banco dos réus, Ponte Visgueiro chorou, assim como tantos homens abusadores e assassinos de hoje, que, ao serem presos, demonstram toda a sua tristeza e arrependimento. Contudo, é difícil dizer se as lágrimas são remorsos pela violência aplicada ou por ser condenado por ela.
Felizmente, contrariando a norma da época — em que a cor, o gênero e a classe social, garantiam os privilégios e inculpabilidade —, Pontes Visgueiro foi condenado. A pena, que deveria ser de morte, como determinava a legislação para esses crimes, foi, contudo, alterada para perpétua.
Apesar de ter sido condenado, a mídia do período e os historiadores que se seguiram consagraram o caso como “O crime do desembargador Pontes Visgueiros”. Ou seja, como já dissemos, até mesmo em seu próprio assassinato, Mariquinhas não tem o protagonismo de sua história.
Sendo assim, passados 150 anos, urge a necessidade de termos essa história revisitada, evidenciando não apenas Mariquinhas, mas também Theresa, Raymunda, Anna Rosa, Adozina, Clotildes, Angelica, Felicidade e outras tantas mulheres que junto a mãe da vítima, Luiza Sebastiana, lutaram para achá-la e prender o criminoso.
Dessa forma, a partir delas, como pesquisadora de gênero, aspiro demonstrar que a passividade e subserviência atribuídas às mulheres do passado são apenas um “fetiche”, um feitiço criado e repetido até o convencimento, para manter as posições privilegiadas dos homens no poder.
As mulheres sempre lutaram por si mesmas e por outras mulheres, foi apenas a historiografia de outrora, profundamente masculinizada e machista, que nos impediu, por longos anos, de enxergá-las e ouvi-las.
O crime do desembargador Visgueiro é o assassinato de Mariquinhas! E 150 anos depois, já passou da hora dele ser contado pela voz delas!
Quando as ouvimos, mesmos pelos filtros intermediários, pelas pistas e sinais que deixaram, as permanências do passado no presente são facilmente reconhecidas.
Quantas mulheres, hoje, ainda são vítimas de feminicídio?
Quantas ainda são violadas, esfaqueadas, esquartejadas físicas e moralmente?
Assim como as amigas e familiares de Mariquinhas não podemos desistir, somos as herdeiras de suas vozes e por elas, não podemos ficar caladas.
Por todas as Mariquinhas, Marianas e Marielles!
Seguiremos em frente, impedindo o esquecimento do passado e lutando pelo futuro de igualdade.