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Açailândia: tentativa de assassinato motivada por racismo vai a julgamento

Câmera de segurança registrou as agressões de Jhonnatan e Ana Paula sofridas por Gabriel em frente a sua casa. Foto: Reprodução

No dia 3 de junho, às 8h30, acontece no Tribunal do Júri de Açailândia (MA) o julgamento de Jhonatan Silva Barbosa, acusado de tentativa de homicídio contra Gabriel da Silva Nascimento – um acontecimento brutal que ocorreu no município maranhense, em 2021, e ganhou repercussão nacional.

A vítima, na época com um pouco mais de 20 anos, é negra. Mas como a cor de sua pele teria contribuído no crime?

Gabriel foi violentamente agredido por Jhonatan e por sua esposa Ana Paula Costa Vidal em frente ao prédio que morava enquanto verificava seu próprio carro. A dupla presumiu que o rapaz estaria cometendo um crime, e, como consequência da suspeita e conclusão, ele foi arrancado do veículo, imobilizado e espancado com chutes, socos e pisões no tórax, tendo, inclusive, a respiração restringida.

Mais do que o julgamento, a razão e a aplicação da Lei diante dos fatos – um direito da vítima – o episódio serve de alerta para o crime de racismo. O advogado Marlon Reis, também assistente da acusação, destaca que o caso poderá reconhecer a motivação do ato por preconceito de raça e cor, o que pode levar ao agravamento da pena em caso de condenação.

“O julgamento promete trazer reflexões sobre o racismo estrutural e o combate à violência motivada por discriminação, sendo um marco importante na luta por justiça e direitos humanos”, afirma Marlon.

Imagens das câmeras de segurança: Fantástico – Sistema Globo de TV

De um país que, em 2024, registrou 5,2 mil denúncias de racismo e injuria racial pelo Disque 100 (números, provavelmente, subnotificados diante do histórico brasileiro), Gabriel deseja justiça.

“Espero que ele seja penalizado na medida de sua culpa. Que repense suas atitudes antes de agir contra alguém em razão da sua cor, das suas vestimentas. Se existem as leis, é para perseguirmos o ordenamento e o procedimento correto, que foi o que eu fiz”, diz Gabriel. Ele se refere à violência racial e ao processo de “justiciamento” que sofreu – também conhecido como “justiça com as próprias mãos”.

Um “viagem” não programada

Na manhã do dia 18 de dezembro de 2021, às 6h20, Gabriel desceu à rua com ferramentas em mãos para fazer uma última checagem da refrigeração do seu carro, um Chevrolet Agile que havia adquirido há dois meses. Naquele dia, ele iria realizar uma curta viagem para participar da confraternização de final de ano do banco, que trabalhava como recepcionista.

Foi quando Jhonnatan, um empresário do município de Açailândia, e Ana Paula chegaram a bordo de uma BMW. Desembarcaram e foram questionando Gabriel sobre “o que ele fazia ali”.

Mesmo esclarecendo que era dono do carro e morava naquele lugar, o agressor contestou a resposta e ordenou que descesse do veículo, já acusando Gabriel de furto. O rapaz atendeu ao pedido e saiu com as mãos para cima. Foi então que começaram as agressões por parte de Jhonnatan e também de Ana Paula, sem que a vítima revidasse.

O empresário Jhonnatan e sua mulher, a dentista Ana Paula, agrediram e tentaram asfixiar Gabriel mesmo após a vítima afirmar que era dona do veículo e negar a acusação de furto. Foto: Reprodução

Gabriel foi jogado no chão por mais de uma vez e encurralado contra um muro. Jhonnatan pisou por três vezes no pescoço da vítima para asfixiá-la e também lhe aplicou um mata-leão na tentativa de matá-lo, segundo descreve a denúncia oferecida pelo Ministério Públicou do Maranhão (MP-MA).

A mulher de Jhonnatan, Ana Paula, também pressionou o pescoço do jovem negro com as mãos e atiçou o marido: “Não deixa ele escapar.” As agressões só pararam quando o um vizinho da vítima, Marcos Wessley Vieira de Oliveira, intercedeu, repetindo o que Gabriel já tinha informado – que ele era morador de um prédio naquela rua e dono do Chevrolet Agile.

“O racismo é justamente o elemento que caracteriza a motivação torpe no caso. Gabriel foi tido como autor de um crime simplesmente por ser negro. Na visão do seu algoz, não seria capaz de ser proprietário do veículo que tentava consertar. Essa leitura da realidade foi marcada por uma visão puramente racista, já que não havia qualquer outro fator que pudesse fazer supor que a vítima estivesse praticando um crime”, esclarece o advogado.

Jhonnatan e Ana Paula negaram os crimes e declararam à justiça que, apenas, tentaram conter Gabriel enquanto buscavam a polícia. No entanto, uma câmera de segurança registrou toda a dinâmica das agressões.

“O racismo é justamente o elemento que caracteriza a motivação torpe no caso. Gabriel foi tido como autor de um crime simplesmente por ser negro. Na visão do seu algoz, não seria capaz de ser proprietário do veículo que tentava consertar. Essa leitura da realidade foi marcada por uma visão puramente racista, já que não havia qualquer outro fator que pudesse fazer supor que a vítima estivesse praticando um crime” Marlon Reis, advogado e assistente de acusação do caso

O caso chegou à Polícia Civil por iniciativa da vítima, que registrou um boletim de ocorrência — que só ocorreu, junto com o exame de corpo de delito, no dia seguinte ao fato. No sábado em que houve a tentativa de assassinato, uma “falha no sistema” da delegacia impedia o registro, segundo afirmaram os policiais.

Os agressores não foram presos em flagrante. Jhonnatan responde até hoje em liberdade. Já Ana Paula, que a princípio poderia ser levada a júri também por tentativa de homicídio, teve sua conduta desclassificada pela juíza Selecina Henrique Locatelli, com anuência do MP-MA: a Justiça deixou de ver a eventual ocorrência de crime contra a vida, o que colocaria a ré diante de um Tribunal do Júri, e a agressora responde por lesão corporal.

Agressor já tem histórico de condenação

Jhonnatan já tem antecedentes criminais e foi condenado por atropelamento e morte de uma pessoa em 2013. Na ocasião, ele dirigia sem carteira de habilitação, voltando de um aniversário. Ele não prestou socorro à vítima, alegando que teve medo de sofrer retaliações de pessoas que, no momento, se aglomeravam no local do acidente. Testemunhas relataram, no entanto, que poucos moradores se aproximaram do local, sem que ninguém estivesse com os ânimos exaltados.

A sentença no caso impunha uma multa e uma pena restritiva de direitos na modalidade prestação pecuniária, uma alternativa à prisão. O caso foi julgado em 2023.

O racismo no Brasil é crime

O racismo é crime no Brasil desde 1989, quando foi aprovada a Lei nº 7.716, também conhecida como Lei do Crime Racial.O racismo, conforme prevê a Constituição Federal, é crime inafiançável e imprescritível. A norma foi alterada em 1997, para incluir a diferença entre as ofensas racistas e discriminação racial. Com isso, a injúria passou a ser considerada um crime menos grave, com pena menor e possibilidade extinção após um prazo determinado.

Em 2023, um marco legal importante equiparou a injúria racial ao crime de racismo, a Lei n.º 14.532. Com isso, atos de discriminação em função da cor, raça, ou etnia, nas mais diversas situações, terão punição mais severas. Aquele que comete um ato racista pode ser condenado mesmo que já tenham se passando muitos anos do crime.

O número de denúncias pelo Disque 100 aumentou 104% em 2024, em comparação com 2023. Como falado anteriormente, foram 5,2 denuncias de  violações de racismo e injúria racial, no Brasil. Com os dados, pode-se concluir que as pessoas estão tomando conhecimento de seus direitos e registrando os preconceitos e violências decorrente do racismo estrutural que o país possui.

O que é racismo?

O racismo é o ato de discriminar, isto é, fazer distinção de uma pessoa ou grupo por associar suas características físicas e étnicas a estigmas, estereótipos, preconceitos. Essa distinção implica um tratamento diferenciado, que resulta em exclusão, segregação, opressão, acontecendo em diversos níveis, como o espacial, cultural, social. Conforme definição do Artigo 1º do Estatuto da Igualdade Racial:

“Discriminação racial ou étnico-racial: toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada”|1|.

O racismo é histórico e diário

Nesta semana, o combate ao racismo esteve em outro momento na pauta do Jornal Tambor – 22 de março foi o Dia Estadual de Combate à Tortura no Maranhão. A data foi instituída diante de outro caso de bestialidade – a morte de Jeremias Pereira da Silva, artista conhecido como Gerô. Negro, ele foi torturado e assassinado por policiais militares na cidade de São Luís, no Maranhão. Ele foi algemado, teve cinco costelas quebradas, parte do maxilar afundado, os rins dilacerados, sofreu hemorragia interna e apresentou várias escoriações por todo o corpo, sendo em seguida assassinado. Confira a matéria da Agência Tambor e a entrevista de Carla Renata, comunicadora da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH).

Não se pode dizer que Gabriel teve sorte (longe disso), mas, vítima “justiçamento”, é vitorioso porque escapou da morte. Sendo assim, vivo, ele pleiteia justiça: “a gente fica triste com essa situação porque, se a pessoa não é punida, ela se promove acima do direito, da lei. Ela vai dizer: ‘Posso fazer qualquer coisa que não vou ser penalizada’ (…) Eles (Jhonatan e Ana Paula) fizeram uma avaliação por conta própria e um julgamento, foram juízes naquela hora. Fizeram uma avaliação pelas minhas vestes, pela minha cor. Aliás, não foi nem um julgamento, porque em um julgamento você pode se explicar, que foi a primeira coisa que tentei fazer. A chave estava na ignição, eu estava com os documentos do carro”, conclui.

(Com informações da Ponte Jornalismo)

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