07/06/2019
Por Anna Muylaert
Em 1991, quando veio à tona o caso do estupro de Mike Tyson contra Desirée Washington, todo mundo teve a mesma reação, inclusive eu: “Mas como assim? A menina sai com o cara, sobe pro quarto dele e depois vem acusá-lo de estupro?“ Naquele momento, o senso comum entendia que, se a pessoa ajoelhou, era obrigada a rezar. Mas o advogado da vítima, conseguiu mudar o rumo das coisas. Ele mostrou para o júri que a mulher pode sim sair, jantar, querer, subir para o quarto e mesmo assim, tem o direito de na hora H, desistir. Ao mesmo tempo, ele convenceu o júri e a opinião pública de que o homem pode sair, jantar, paquerar, beijar e mesmo assim não tem o direito de fazer sexo forçado, ou seja, estupro. O caso foi ganho pra ela, Tyson foi pra cadeia e o mundo mudou… um pouco.
Décadas depois, o caso Neymar/Najila reabre o mesmo debate. Se ele pagou a passagem aérea e ela foi até Paris com o desejo de fazer sexo com ele, a idéia de estupro parece , para muitos, uma mentira, um exagero ou quiçá uma tentativa de extorsão. Porém, ainda no último final de semana, quando o jogador expôs toda a conversa do casal no WhatsApp, ele já começou a mostrar seu lado mais obscuro. Ele tentava provar de maneira torpe que o fato dela ter ido até ele consensualmente, descartava de imediato a hipótese de estupro. Parece que ele não tem conhecimento do caso Tyson-Desirré. Se tivesse, saberia que isso não prova nada. E no entanto ele expôs não apenas a conversa picante e íntima dos dois, como também fotos dela nua – algumas borradas, mas também uma da bunda vermelha de tanto apanhar. Enquanto ele parecia estar se defendendo, na verdade já estava atacando. Lembrei de um documentário que vi na TV americana sobre o caso de Tyson. O pai da vítima, então com 23 anos – contava o jeito que a menina chegou em casa após o fim de semana com o ídolo. Desesperada, incomodada, confusa e calada, ela passava o tempo todo trancada no quarto chorando, até ele perceber que algo estava errado e conseguir tirar dela a confissão, que o fez ir ao tribunal. Foi o estado mental desesperado da vítima que abriu o processo.
Ontem, num entrevista ao SBT, a suposta vítima Najila falou claramente a um confuso repórter Roberto Cabrini, sobre seu desejo de estar com Neymar e como o possível encontro de prazer se transformou em segundos num desrespeitoso e violento sexo forçado, quando ela se negou a fazer sexo sem proteção. A questão aqui é a seguinte: muitos homens forçam sexo e não entendem que isso é sinônimo de estupro. Se a mulher falar não, por mais que ela o ame, seja namorada ou esposa, se ela falar não e ele usar força para praticar o ato sexual, isso tem nome e o nome é estupro.
Tenho uma amiga que viveu exatamente a mesma história há cerca de 20 anos atrás. Ela saiu, foi pra balada , encontrou um cara que ela curtia, ficaram e foram para o hotel dela. Ao chegar lá, perceberam que não tinham camisinha e ela disse que não faria sexo desprotegido. Ele não aceitou o argumento e em seguida forçou sexo. Ela tentou sair da situação, mas não conseguiu. Mesmo assim, dormiram juntos e no dia seguinte, ela ainda foi tomar café da manhã com ele na padaria. Essa amiga diz que se lembra até hoje dos seus pulsos roxos e hematomas nas pernas, causadas pela violência da noite anterior, mas foi só agora com o #metoo e outros discussões que ela entendeu que havia sido estuprada. Vinte anos depois!
Não sei dizer se a suposta vítima de Neymar está falando a verdade ou não, só laudos e investigação poderão provar. Mas pelo jeito que ela falou sobre o acontecido e pela sinceridade com que ela se expôs ao repórter do SBT, eu tendo a acreditar 100% na versão dela. Ao ser indagada se ela queria dinheiro, ela disse que não, que só queria justiça – e neste momento contou um dos piores detalhes da história: Segundo Najila, o primeiro advogado (homem) que ela procurou não apenas não acreditou nela, como não queria deixa-la ir até a polícia e – mesmo sem a anuência dela – aproveitou a oportunidade, procurou o pai de Neymar e fez uma tentativa de extorsão, imagino que milionária. Ao perceber a jogada, Najila foi corajosa e mesmo contra a vontade dele, foi até a polícia e fez a denúncia. Neste momento o advogado largou o caso.
Quero aqui prestar minha solidariedade feminina e feminista à Najila. Desejo que a justiça seja feita e que a verdade, seja ela qual for, venha à tona – favorecendo quem for inocente. No entanto, caso seja provado que o jogador seja realmente culpado – sou pessimista no que diz respeito à justiça que possa ser feita. Com toda a sociedade patriarcal do lado dele, incluindo nosso “presidente”, é provável que, mesmo sendo considerado culpado pela justiça – ele não vá sofrer consequências maiores. Num país onde uma presidente é deposta por “pedaladas fiscais” enquanto um réu como João de Deus – que abusou e estuprou centenas de mulheres (fora as acusações de homicídio e extorsão) já conseguiu sair da cadeia e cumpre pena no hospital – O que poderá acontecer ao Neymar?”
*Anna Muylaert é cineasta