
*Por Paulo Vinicius Coelho
Vê-se ainda nítida a marca exitosa do longa-metragem Ainda Estou Aqui, semanas após a cerimônia do Oscar. Saída da tela do cinema, a obra – um furor social, em todas as categorias; clássico instantâneo – extralimitou-se, com sua narrativa delicada acerca do drama de Eunice Paiva (Fernanda Torres) e seus rebentos, acuados pela mordacidade do Regime Militar brasileiro.
Falou-se, em toda sorte de discussões – corretamente, vale dizer –, sobre o audiovisual brasileiro; o que é possível ser vislumbrado a partir da força do filme nos circuitos cinematográficos; o cambaleante cinema nacional, sempre atravessado por descaminhos que o obrigam a um exercício de retomada permanente, e, sim, pôs-se em verbos os subtextos políticos flagrantes no drama que siderou aos brasileiros e aos espectadores mundo afora.
Retomar o debate sobre a Ditadura Militar, ao contrário do que sugerem alguns setores da direita, em crítica cultural, não é repisar, meramente, o enfado do tema, se há enfado. Pessoalmente, custo a crer que haja, sobretudo porque nós, brasileiros – e, noutra instância, a política brasileira – não tratou de superar a influência das fardas e dos fardões verde-oliva na vida nacional. Não se foi desenhada solução fora do apazíguo. De um desavergonhado “deixa disso” que, antes de nos devolver a democracia, antecipou um sono tranquilo aos malfeitores nos porões, celas, delegacias, pátios, gabinetes e guaritas do Brasil, entre 1964 e 1985.
Por conta disso, não foi sem surpresas que estremeci ao passar perto da televisão e ouvir os versos que dão início à canção É Preciso Dar um Jeito Meu Amigo, na voz de Erasmo Carlos. Até aí, sem surpresas. Amo Erasmo. Só não pude crer mesmo é nas imagens que acompanhavam o canto contundente do Tremendão: nada de Fernanda Torres, tampouco Selton Melo. Era – pasmem! – imagens do ex-presidente José Sarney, o democrata às avessas.
Em março deste ano, quatro décadas se passaram desde aquele dia 15 em que, por obra do destino, o ilustre maranhense fora alçado ao centro da cena, em princípio, como um presidente paliativo. Tancredo agonizava. Havia alguma fé de que fosse possível vê-lo assumir as rédeas do país. Sarney, na ocasião, dera apenas tratos à bola. Nomeou os ministros escolhidos pelo titular enfermo, foi discreto no discurso da posse que a ventura lhe reservou e seguiu.
Poder-se-ia considerar, até aí, inexistente um contrassenso que tornasse o autor de O Dono do Mar e Marimbondos de Fogo indigno da atribuição de democrata. Exceto o fato de que, para o bem do que a História nos garante, Sarney esteve pareado aos ditadores brasileiros; no partido dos ditadores brasileiros – a Aliança Renovadora Nacional (Arena) -, tempo o bastante, à ilharga de acenos ao receituário iluminista, civil e politicamente prudente; democrático, portanto.
Seu afastamento aconteceu aos 45 minutos do 2º tempo de um jogo violento, responsável pelo atraso brasileiro, e por violências de Estado nos mais variados níveis. Excessos sanguinolentos, por exemplo, repercutiram na morte do ex-deputado federal Rubens Paiva, a centelha representativa do que Ainda Estou Aqui desvela – a morte, a tortura e o medo assinalados por uma condução política arbitrária. Condução esta cujo afago, avalizado, também partiu das omissões de quem, na política, optou por ombrear-se à barbárie daqueles anos.
Tratar como líder da redemocratização o arenista José Sarney, como a imprensa e outros contingentes relevantes da sociedade brasileira tem feito ultimamente, é um escárnio com os verdadeiros patriotas que resistiram à selvageria. Faço questão de mencionar um outro maranhense: Manoel da Conceição. Em 1968, quando era presidente do sindicato de trabalhadores rurais que havia fundado há cinco anos, Manoel da Conceição foi baleado e preso pela Polícia Militar de José Sarney. Sem atendimento, teve sua perna amputada. Depois, o então governador lhe ofereceu vantagens materiais para que ficasse calado. O líder camponês rejeitou. Desse episódio surge a famosa frase: “minha perna é minha classe’’.
A violência e o autoritarismo são apenas sintomas do que caracterizam os governos de Sarney e sua oligarquia no Maranhão, que também pode ser descrita como patrimonialista e corrupta. Pode-se tentar ocultar ou mascarar a realidade, mas a verdade é que o legado de Sarney está muito mais atrelado à miséria maranhense do que a qualquer contribuição significativa para a democracia ou para o avanço civilizatório.
Outra farsa propagada pelos grandes meios de comunicação é a de que o então presidente teria sido um dos grandes responsáveis pela promulgação da Constituição Cidadã. Mas como esquecer os acalorados debates entre Sarney e Ulysses Guimarães, em que o primeiro argumentava que a Constituição tornaria o país ingovernável, enquanto o segundo ressaltava que ingovernáveis eram a fome e a falta de direitos?
A história está em disputa. Sempre esteve. O tempo fez questão de demonstrar como foi equivocado anistiar os militares pelos crimes cometidos durante a ditadura. Agora, a sociedade brasileira parece novamente optar pelo apaziguamento e o eufemismo para eleger como símbolo da democracia quem na verdade sempre foi algoz dela. Eu, opto pelo outro lado. Prefiro evocar a memória de Marcelo Rubens Paiva, Eunice Paiva, Ulysses Guimarães, Leonel Brizola, Chico Buarque, Edson Luis, Vladimir Herzog, Gregório Bezerra, Zuzu Angel e outros tantos ilustres brasileiros que resistiram aos anos de chumbo.
*Paulo Vinicius Coelho é jornalista
sarney reflete impunidade
pelos crimes contra a vida
em décadas de imunidade
pisando na gente sofrida!!!