*Por Paulo Victor Melo
Tomemos como exemplo o maior conglomerado de comunicação do país. Em novembro do ano passado, o Grupo Globo anunciou uma campanha que envolveu iniciativas em algumas das suas empresas subsidiárias. De acordo com a empresa, “a campanha foi pensada e desenvolvida a partir da soma de forças criativas de contadores de história negros e negras do Entretenimento e de Marca e Comunicação”.
No mesmo texto, o Grupo Globo afirma que “os canais TV Globo, GNT, Multishow, Canal Bis, Canal OFF e Futura, e o Globoplay, também prepararam conteúdos especiais para marcar o mês da Consciência Negra, que tem um marco de celebração no dia 20, relembrando a data da morte de Zumbi dos Palmares”.
Não parece haver dúvidas de que é mesmo importante uma maior atenção dos meios de comunicação com a diversidade racial. A respeito disso, num artigo intitulado “O Brasil está descobrindo a potência do protagonismo negro nas telas”, publicado no site Mundo Negro, a repórter Halitane Rocha escreveu: “no que diz respeito ao protagonismo negro nas produções brasileiras no audiovisual em 2023, eu, particularmente, começo a me sentir representada. Claro que ainda há muito o que melhorar, mas estou encerrando esse ano bem feliz com a quantidade de produções que destacaram nossa comunidade negra”.
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Assim como Halitane, muitas mulheres e homens negros passam a olhar para os meios de comunicação e, diferente de outras décadas, conseguem, em alguma medida, estabelecer relações de identificação, sobretudo pela presença de profissionais do e do audiovisual como Maju Coutinho, Flávia Oliveira, Lázaro Ramos, Clara Moneke, Samuel de Assis, dentre outras e outros.
O grande desafio, no entanto, é compreendermos que essa maior “representatividade em tela” não tem a ver com uma comunicação efetivamente democrática. Ao contrário, a “abertura” de grandes grupos privado-comerciais de comunicação pode indicar uma espécie de oportunismo da crescente “onda antirracista empresarial”, que faz com que até mesmo uma corporação como o Carrefour, denunciado em diversos casos de racismo, anunciasse um “plano de ações antirracistas”.
Recorrendo à formulação conceitual do professor Muniz Sodré sobre tecnocultura (entendida como a articulação entre comunicação, tecnologia e economia de mercado), o também professor Dennis de Oliveira, da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), avalia que a mídia principal, ao cobrir mais casos de racismo, está envolvida em uma espécie de disputa sobre o significado do ‘racismo’. “E isto dá-se pelo exercício da hegemonia do discurso midiático incorporando e ressignificando as demandas expressas pelos movimentos sociais dentro das estruturas institucionais da democracia liberal e do capitalismo”.
Ao analisar um conjunto de notícias sobre casos de racismo publicadas nos portais UOL e G1 em junho deste ano, Dennis de Oliveira chama a atenção para diversos aspectos fundamentais. Aqui, enfatizo três:
- a localização dos casos de racismo nos valores-notícia de infração, inesperado e – conflito, o que contribui para uma exploração dos fatos por uma perspectiva sensacionalista;
- a tematização dos fatos sem uma contextualização e vinculação com outras questões;
- a transposição do racismo do campo da política para o das atitudes e comportamentos.
Como um dos resultados, Oliveira diz que há uma “exclusão dos sujeitos coletivos dos movimentos sociais e, em troca, a colocação das iniciativas positivas protagonizadas por pessoas, empresas, ONG’s, entre outras”. E tudo isso “em detrimento da busca dos fundamentos, das raízes do racismo quando se considera o fenômeno como estrutural, portanto, lógico na reprodução social o que implicaria uma conexão das singularidades dos fatos narrados sobre preconceito e racismo com elementos estruturantes e históricos no campo político e econômico da sociedade. Mas isto já não seria possível dentro da construção da hegemonia operada pela mídia”.
É justamente por concordar com o professor Dennis de Oliveira que afirmamos: é fundamental atravessarmos a fronteira da aceitação de uma lógica neoliberal de representatividade para a reivindicação por uma mudança estrutural nos meios de comunicação brasileiros, de modo que a população negra esteja representada não apenas na maior presença de profissionais negros(as) em tela ou na identificação de mais conteúdos que pautem questões raciais.
A história das comunicações no Brasil é, em essência, uma história de articulação entre elites econômicas e políticas, que se constituíram, desde sempre, também como elites raciais. Por isso não é acaso que, num país em que 53% da população é negra, os “donos da mídia” sejam homens, sejam brancos e sejam ricos.
Neste sentido, a reivindicação por uma mudança estrutural nas comunicações passa, primeiro, por garantia de equidade na propriedade de mídia, com reserva de espectro para emissoras de rádio e televisão geridas por organizações coletivas negras.
Essa mudança estrutural deve incluir também medidas como: investimento prioritário, via publicidade estatal, em meios de comunicação constituídos por associações de pessoas negras; estabelecimento de cotas para realização de parcerias entre meios de comunicação e produtoras independentes administradas por pessoas negras; presença equitativa de representações da população negra tanto em órgãos externos de fiscalização e regulação do setor quanto em instâncias internas dos meios de comunicação.
Em síntese, um setor de comunicação realmente engajado com a Consciência Negra, com a equidade racial ou com o antirracismo não vai surgir por iniciativas das empresas, que têm compromisso com os seus lucros. O limite das ações da mídia privado-comercial é muito bem definido, é o limite dos seus interesses empresariais.
Desta forma, apenas um processo de reforma estrutural, por meio de políticas incisivas de comunicação, com profunda participação popular, será capaz de tal feito. E sobre isso, lamentavelmente, o que temos visto desde o início do terceiro governo Lula é um assombroso silêncio, uma espécie de atestado de que políticas democráticas de comunicação são, em verdade, um “não-assunto”.
*Paulo Victor Melo é jornalista, professor e pesquisador de Políticas de Comunicação. Integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.