Modo de vida: no dia a dia, a resistência que preserva a identidade e a cultura dos territórios quilombolas. (Foto: Barbara Malaquias) O que esperar de uma Justiça que, enquanto instituição, deveria assegurar direitos constitucionais e reparar desigualdades históricas, mas que na prática se mostra preconceituosa e deslegitima a identidade quilombola? O que resta às comunidades para reafirmar sua autonomia e fortalecer seu povo e território?
Quilombolas do Maranhão denunciaram a juíza Luzia Madeiro Neponucena, titular da Vara Agrária da Comarca de São Luís, por condutas consideradas racistas, autoritárias e desrespeitosas durante sua visita ao território Quilombola Onça, em Santa Inês. O caso ganhou força depois que a Comissão Pastoral da Terra (CPT-MA) e o Movimento Quilombola do Maranhão (MOQUIBOM) divulgaram uma nota pública repudiando a postura da magistrada.
O episódio relatado pelo Quilombo Onça evidencia um problema estrutural e levanta uma questão crucial: o racismo institucional se limita a violências explícitas ou também se manifesta quando autoridades questionam a autodefinição étnica, relativizam direitos garantidos e tratam culturas tradicionais a partir de lentes coloniais? Nesses casos, buscar respostas exige mobilização — jurídica, coletiva e pública — para garantir que o sistema de Justiça seja confrontado e responsabilizado quando necessário.
A denúncia, apresentada em entrevista ao programa Dedo de Prosa, veio à tona após uma inspeção judicial que, segundo as lideranças quilombolas, foi marcada por “violência simbólica” e falta de respeito. Valéria da Conceição, moradora do Quilombo Onça e integrante da coordenação do MOQUIBOM, relatou que a comunidade deixou a reunião “triste e angustiada”. “A gente esperava garantias de direito. E o que ouvimos foi totalmente diferente do que imaginávamos”, afirmou.
[Veja a entrevista na íntegra ao final desta matéria.]
As declarações atribuídas à juíza reacenderam o alerta sobre violações de direitos, questionamentos à identidade quilombola e ataques a processos já reconhecidos pela Constituição e por tratados internacionais. Representantes do movimento afirmam que as falas reforçam práticas históricas de discriminação e podem impactar diretamente a luta pela titulação dos territórios.
Segundo Valéria, a juíza teria questionado a própria identidade quilombola da comunidade, cobrando “provas materiais” de ancestralidade. “Ela perguntou quais requisitos poderíamos mostrar para provar que aqui é um quilombo. Mas quem afirma quem somos somos nós. Nenhuma autoridade pode chegar e dizer quem é ou não é quilombola”, declarou.
Raimundo Moreira, da coordenação colegiada da CPT-MA, confirmou que a entidade acompanhou a visita e considerou as falas da juíza “de extrema violência simbólica”. Ele destacou que a abordagem da magistrada pareceu desconsiderar a vivência coletiva das comunidades centenárias. “A fala dela é muito direcionada como se fosse voltada ao agronegócio, e não à realidade dos quilombos”, avaliou.
Entre as declarações atribuídas à magistrada, uma chamou particular atenção dos movimentos: a afirmação de que, caso obtivessem a titulação, as famílias quilombolas “ficariam escravizadas para o resto da vida”. Para Raimundo, esse tipo de discurso contraria o papel da Justiça Agrária. “Escravidão não é apoio, é condenação. O direito à terra é garantido pela Constituição e pela Convenção 169 da OIT”, lembrou.
As organizações também denunciaram que a juíza teria incentivado comunidades a solicitarem à Fundação Cultural Palmares o cancelamento de suas certidões de autodefinição quilombola — documento que reconhece a identidade étnica. Para Valéria, essa fala reforça o racismo institucional. “Ela só afirmava mais esse preconceito histórico que a gente enfrenta. É muito grave”, disse.
O episódio reacende debates sobre a violência fundiária no Maranhão, um estado marcado por conflitos territoriais e intensa pressão de fazendeiros e empreendimentos do agronegócio. Raimundo lembra que a demora na titulação de terras quilombolas contribui para ameaças, expulsões e até assassinatos. “Muitas comunidades vivem sob risco. A fala de quem deveria garantir direitos não pode alimentar ainda mais essa violência”, ressaltou.
Tanto o MOQUIBOM quanto a CPT defendem que o caso seja investigado pelas instâncias competentes e sirva como alerta para que outras comunidades não passem por situações semelhantes. “Nossa denúncia é um pontapé para garantir respeito não só ao nosso território, mas a todos os quilombos do Maranhão”, afirmou Valéria.
O outro lado
A Agência Tambor entrou em contato com a Vara Agrária do Tribunal de Justiça do Maranhão para esclarecer os fatos. Até o momento, não houve resposta ou posicionamento sobre o caso. Assim que a equipe de reportagem obtiver um retorno, esta matéria será atualizada.
O programa Dedo de Prosa, da Agência Tambor, entrevistou Valéria da Conceição e Raimundo Moreira.