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João Cândido: a resistência negra pelas mãos de um artista maranhense

Através da série de lambes “O palco foi o mar”, o artista maranhense Marcos Alany, natural de Itapecuru-Mirim, revisita a história de João Cândido Felisberto e seus companheiros – líderes da Revolta da Chibata, movimento de marinheiros negros contra os castigos físicos na Marinha do Brasil, ocorrido em 1910. O trabalho, que nasceu como projeto de conclusão do curso de Design na UFRJ, vai além da arte expositiva: é um manifesto visual de resistência, memória e disputa simbólica por reconhecimento histórico.

Em entrevista ao programa Dedo de Prosa, da Agência Tambor, Marcos contou que a ideia surgiu a partir de sua própria trajetória: ele serviu à Marinha por quase uma década e, nesse tempo, jamais ouviu o nome de João Cândido ser citado nas formações institucionais. “Isso me chamou a atenção. Fui entender que se tratava de um projeto de apagamento mesmo, porque ele foi subversivo, lutou por direitos humanos básicos”, afirma o artista.

A exposição, esteve recentemente exposta no Convento das Mercês, em São Luis, mas para o artista essa foi apenas uma das formas de expressar seu trabalho, que tem como mídia principal os lambes – colagens urbanas que ocupam espaços públicos. “A rua é o primeiro lugar de onde esse trabalho nasceu. Mas qualquer espaço é legítimo para dar visibilidade a essas figuras que nos foram negadas”, diz Marcos. Ele já realizou intervenções com os cartazes em Itapecuru e no Rio de Janeiro, e pretende expandir a ação por São Luís.

Lambe-lambe aplicado às margens da Baía de Guanabara, primeiro Distrito Naval, Praça Marechal Âncora, na cidade do Rio de Janeiro Acervo pessoal do artista

Marcos ressalta que o uso da arte urbana está alinhado com a proposta de democratizar o acesso ao debate sobre a memória negra e popular no Brasil. “A ideia é fazer com que as pessoas se reconheçam como herdeiras dessas lutas. João Cândido é símbolo disso. Ele deve estar no imaginário coletivo tanto quanto figuras como Tiradentes”, defende.

A obra de Alany também confronta os espaços institucionais que perpetuam narrativas hegemônicas. Inclusive, exibir seu trabalho no Convento das Mercês, por exemplo – um local que o artista julga marcado pela memória da oligarquia Sarney – foi uma decisão política. “É um espaço público e tem que ser ocupado pelo povo. A memória do João Cândido precisa disputar esses lugares também”, afirma o artista.

Para além da estética, a série traz elementos simbólicos poderosos: colagens que misturam imagens históricas dos marinheiros da revolta com fotografias da própria vivência do artista na Marinha, criando uma ponte entre passado e presente. “É uma passagem de bastão. Uma forma de dizer que a luta continua e que somos parte dessa história”, diz Marcos.

A obra de Marcos Alany  também está no Museu do Marinheiro João Cândido, inaugurado em dezembro de 2024, em São João de Meriti (RJ). Na foto o artista entrega a obra a Cândinho, filho de João Cândido. Imagem: acervo do artista

Sobre João Cândido

João Cândido Felisberto (1880–1969), nascido em Encruzilhada, Rio Grande do Sul, foi líder da Revolta da Chibata (1910) que aconteceu na Cidade do Rio de Janeiro. Mesmo sob os pilares republicanos que o país vivia, a Marinha ainda praticava castigos de herança escravocrata, como a chibatada.

Com um plano estruturado, João Cândido e seus companheiros tomaram posse dos principais navios da Armada Brasileira e, com maestria operativa, navegaram pela Baía de Guanabara, possibilitando capacidade de barganha e visibilidade para sua causa, sendo inclusive notados por forças armadas estrangeiras como manobras náuticas de extremo profissionalismo. Por isso, um de seus apelidos: Mestre-Sala dos Mares. A revolta durou quatro dias.

Os navios só foram devolvidos à Armada Brasileira mediante o acordo do fim dos castigos corporais e da anistia para os participantes da revolta. No entanto, traído pela Marinha e pelo governo, João Cândido chegou a ser preso na ilha das cobras no Arsenal da Marinha. Sobreviveu a uma tentativa de assassinato, com solução de cal colocado na cela onde estava preso, dos 18 presos sobreviveu somente o fuzileiro naval Avelino Lira e o próprio João Cândido. Cândido foi perseguido até o fim da vida pela Marinha, sofrendo embargos que dificultavam o acesso ao trabalho. Sua figura, até hoje, enfrenta resistência quanto ao devido reconhecimento como uma das personalidades que deixaram um legado significativo para o povo brasileiro.

A entrevista completa com o artista Marcos Alany foi ao ar no programa Dedo de Prosa, da Agência Tambor, e está disponível na íntegra.

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