
Em junho de 2022, no banco de trás do carro de um amigo, a caminho de um ensaio do Boi de Maracanã, o pedido aparentemente simples para ouvir a toada “Lá Vai Touro Vencedor”, do LP Sombra da Palmeira (1993), acabou se tornando o ponto de partida para uma revelação marcante. Ao saber que a toada não estava disponível no Spotify, mas podia ser encontrada no canal de Roselane Plácido no YouTube, teve início uma investigação sobre uma figura até então invisível à historiografia oficial, mas fundamental para a preservação da cultura popular do Maranhão.
O interesse pela memória sonora do bumba meu boi do Maranhão remonta à década de 1930, quando intelectuais brasileiros passaram a documentar as manifestações da cultura popular. Em 1938, a Missão de Pesquisas Folclóricas — organizada pelo Departamento de Cultura de São Paulo, sob a orientação do escritor e um dos fundadores do modernismo brasileiro, Mário de Andrade — percorreu o Norte e o Nordeste do país em busca de registros musicais. O grupo aportou em São Luís, no bairro do João Paulo, no dia 19 de junho.
Esses registros marcaram o início da documentação fonográfica do boi. Décadas depois, entre os anos 1970 e 1980, surgiriam os primeiros LPs gravados por grupos como o Boi da Madre Deus e o Boi de Pindaré, consolidando uma nova etapa na preservação dessa tradição. Hoje, quando grande parte desse acervo permanece fora das plataformas digitais, é no Youtube que se encontram joias raras reunidas por iniciativas individuais como a de Roselane Plácido, que mantém um canal inteiramente dedicado à cultura popular maranhense.
O perfil foi criado no primeiro dia de julho de 2013 e conta, na data desta publicação, com mais de cinco mil inscritos e mais de duas milhões de visualizações nos 1.218 vídeos postados, boa parte deles raros ou exclusivos. Um exemplo é o LP contendo os 12 vencedores do 1° Festival de Toadas do Bumba Meu Boi do Maranhão, organizado pela TV Difusora em 1986, com participações de Zé Olhinho (Boi de Pindaré), Lauro (Boi de Ivar Saldanha), Leonardo (Boi de Iguaíba) e outros mestres.
Mas, afinal, quem é Roselane Plácido e como foi constituído o que hoje é certamente um dos principais acervos virtuais da música popular maranhense? Não foi tão fácil encontrá-la. Tentamos contato pelo e-mail exibido no canal e não obtivemos resposta. Depois, buscamos por perfis com o mesmo nome nas redes sociais e tentamos comunicação com todos, sem sucesso. Partimos, então, para um trabalho mais minucioso. Certamente alguém já havia tido o interesse de contribuir com a coleção de Roselane e perguntado nos comentários de seus vídeos como contactá-la. Bingo! Há dois anos, a dona do perfil utilizou a modalidade “posts’’ do Youtube para anunciar: “Novidades chegando no canal! Uma preciosidade do Boi de Maracanã. Vinil de 1984. Também 2 vinis fantásticos da música maranhense. Patíbulo, de Rogério do Maranhão e Tribo (Festival de música maranhense). Aguardem!’’.
O autor de um dos três comentários questiona: “como posso entrar em contato com você?’’ e Roselane dá o caminho, o mesmo seguido por nós. Enviamos uma mensagem para a responsável pelo acervo com um convite para uma conversa presencial. Rapidamente obtivemos a resposta de que sim, ela toparia nos conceder uma entrevista, mas preferiria que ocorresse por mensagem, por conta da sua timidez.
Paixão germinada desde a infância
Roselane Plácido, 48, autônoma, nasceu e foi criada no bairro da Cohab, em São Luís. “Nasci em uma noite de junho e sempre fui apaixonada por bumba meu boi. Desde criança, amava ouvir as toadas e acompanhar as brincadeiras nos arraiais’’, relata.
Não é de se espantar que a infância da acervista cultural independente – denominação que esta reportagem toma a liberdade de lhe conceder – tenha sido marcada pela sonoridade dos grupos tradicionais e pela forte presença da cultura popular maranhense. Os arraiais, como bem lembra Roselane, não poderiam acontecer sem o protagonismo dessas figuras.
Além disso, as primeiras experiências de Roselane com as brincadeiras juninas ocorreram em uma fase importante e de transição para a indústria fonográfica maranhense. Nas décadas de 70, 80 e 90, houve uma espécie de institucionalização dos grupos, marcada pela transformação dos bois em personalidade jurídica, por meio da criação de entidades associativas, e pela crescente organização interna, com a construção de sedes próprias e a consolidação de determinados territórios urbanos como referências de cada grupo. Como parte desse processo, intensificaram-se também as articulações com o poder público e foram realizados os primeiros registros em disco.
O pioneiro nesse movimento foi o Boi da Madre Deus, que gravou o primeiro LP de bumba meu boi da história em 1970, no Rio de Janeiro, lançando-o em 1971. O disco está disponível no YouTube graças à iniciativa do jornalista Henrique Bóis.

Os anos 70 também são marcados por um contexto no qual as ações do poder público voltadas ao turismo passaram a destacar o bumba meu boi como a principal representação da cultura popular maranhense. Esse período é considerado o terceiro marco temporal das brincadeiras de boi no Estado, sucedendo duas fases anteriores: a primeira, entre 1900 e 1950, caracterizada pela repressão policial e pelo preconceito das elites; e a segunda, entre 1950 e 1970, quando houve uma valorização inicial dos bois, sobretudo com a realização de concursos e a participação de grupos de outros municípios nas celebrações em São Luís.
Essas delimitações temporais constam no dossiê de registro do Complexo Cultural Bumba Meu Boi do Maranhão como Patrimônio Cultural do Brasil, organizado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e publicado em 2011. A manifestação foi, posteriormente, consagrada Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura), em 2019.
Ausência notada
Por coincidência — ou não —, na foto que nos enviou, Roselane está posando em meio a uma série de vinis e segurando, em cada uma das mãos, os dois primeiros LPs publicados na íntegra no seu canal: Matraca da Maioba – João Chiador -, e Bumba Meu Boi de Axixá, ambos lançados em 1981. Este último tem Donato Alves como cantador. Já o disco com João Chiador marca a primeira gravação tanto do cantador, que faleceu em 2017, quanto do Boi da Maioba.
Apesar da ascensão das toadas em formato de vinil durante a juventude, houve um momento em que os ouvidos de Roselane passaram a sentir falta de parte dos ritmos que a acompanharam durante seu crescimento. É nesse contexto que surge o trabalho no Youtube, como ela explica: “Decidi criar o canal quando percebi que essas toadas que gostava de ouvir desde criança deixaram de tocar nos programas de rádio, dando lugar às novas toadas, as toadas de CDs.”
Como é de se imaginar, as raridades não caíram do céu para Roselane, que como boa acervista, se mantém atenta às possibilidades de garimpo para seguir compartilhando as gravações. “Os áudios publicados são do acervo que eu já tinha, mas também compro vinis de um amigo que tem muitos discos de boi de matraca. Discos que não acho mais na internet, tão antigos que alguns nem possuem capas. Mas a maioria são discos que comprei pelo Mercado Livre, Discogs e outros sites de venda”, esclarece.
O expediente de Roselane ratifica a importância da mídia física e o fato de que nem todo conteúdo consta nas plataformas digitais. Colecionadores, sebos, casas de cultura, pesquisadores e outras personalidades, guardam, às vezes com exclusividade, bens preciosos. Uma das referências em São Luís é o Bar do Léo, estabelecimento que funciona há 47 anos no bairro do Vinhais e possui uma imensa coleção de CDs, vinis e outros itens, inclusive relacionados ao bumba meu boi e a outras expressões da cultura popular. Frequentemente, o bar é procurado por quem consulta uma informação não disponível na internet.
Roselane Plácido nos explicou também como se dá o processo de envio das músicas para o seu canal. “Comprei um aparelho que converte vinil para MP3 e fui compartilhando os discos no Youtube. A minha intenção é imortalizar essas toadas e as obras desses cantadores nos discos de vinil, que estavam sendo esquecidas”, comenta.
Outras expressões
O carro-chefe do canal de Roselane Plácido no Youtube é o bumba meu boi, mas as outras manifestações da cultura popular maranhense também marcam presença. Os primeiros vídeos publicados pela acervista são de apresentações realizadas por blocos como o Fuzileiros da Fuzarca. O Bicho Terra, outra grande expressão do carnaval maranhense, também conta com álbuns publicados na íntegra no canal.
Alguns discos fundamentais da música maranhense, não presentes em outras plataformas de música, estão disponíveis na íntegra no canal, a exemplo do Pedra de Cantaria (1980), gravado em Belém (PA) e composto por clássicos como Cavalo Cansado (Sérgio Habibe) e Terra de Noel (Josias Sobrinho), além de canções de Giordano Mochel, Ubiratan Sousa, José Pereira Godão e Chico Maranhão. O álbum, além de reunir boa parte dos mais célebres compositores maranhenses da época, é uma espécie de resposta ao Bandeira de Aço, disco que gerou discórdia por conta das modificações, feitas por Papete e o selo Marcus Pereira, na sonoridade e nas letras feitas pelos compositores. Em Engenho de Flores, por exemplo, a letra original de Josias Sobrinho diz: “eu vi fortaleza abalar’’. No Bandeira de Aço, a música foi gravada com: “eu vi fortaleza falar’’.

Acervos não institucionalizados, memória e preservação
A natureza do Youtube, com recém-completados 20 anos, é propícia para os objetivos de Roselane. A plataforma de vídeos surge em um tempo anterior à popularização das plataformas de streaming musical que tanto conhecemos, com políticas de direitos autorais mais rígidas. Assim, o canal de Roselane Plácido faz parte de um aglomerado mais colaborativo e interativo que o das plataformas de áudio atuais, o que se comprova em comentários como o da imagem a seguir, a respeito da toada “Urro do Boi”, do já mencionado LP de 1981 de João Chiador e Boi da Maioba.
Fonte: sociedadedocopo.com