As presenças de Jair Bolsonaro na Presidência da República e de Sérgio Moro no Ministério da Justiça representam uma agressão à frágil “democracia” brasileira. Inclusive, se a dupla fosse um pouquinho diferente, o ex-juiz federal já estaria afastado do cargo que segue ocupando no Poder Executivo. O que o The Intercept já revelou é inaceitável em qualquer república de respeito. É um escândalo!
Hoje, Bolsonaro e Moro são a face mais visível do autoritarismo brasileiro, da herança da ditadura, do poder do crime organizado (milicianos), da fraude eleitoral (caso das laranjas e do WhatsApp), da parcialidade da justiça, do desrespeito aos direitos humanos, da calúnia como instrumento político, do farisaísmo religioso, da violência institucional, da interferência ilegítima de familiares nos governos. Por tudo isso, precisamos combatê-los, denunciá-los, buscar alternativas. E mais do que isso, precisamos aprender com a história.
Atualmente, um dos problemas brasileiros são mentiras aparentemente bobas, que poderiam ser facilmente desmascaradas, mas que passaram a ter algum enraizamento, contribuindo para a recente eleição de Bolsonaro, diminuindo sua rejeição. Trata-se de um discurso que minimiza as atrocidades promovidas pela ditadura militar no país, a partir do golpe de 1964. É uma versão; divulgada inclusive por professores; onde é propagado que houve “uma reação a tentativa de implantar o comunismo no Brasil”. Outros dizem que a ditadura “combateu a corrupção” e só quem se deu mal foram os “bandidos”. Este problema foi criado na “transição democrática”, processo que passou pela década de 1980, tendo entre protagonistas figuras de dentro do antigo regime, caso de Marco Maciel, Antônio Carlos Magalhães, José Sarney, Jorge Bornhausen.
No último dia 26 de junho, houve um encontro de grande repercussão, mais especificamente no Maranhão. Flávio Dino, atual governador do estado, foi até a casa de José Sarney, em Brasília. A visita e a conversa, segundo a versão do próprio Dino, foi para ele dizer a Sarney que “a democracia brasileira corre perigo”.
A questão não é bem o encontro, um episódio da realpolitik. O problema central é o discurso. Associar figuras como José Sarney a luta por democracia é um desserviço, inclusive as futuras gerações. É bem complicado, em 2019, nessa altura do campeonato, a possibilidade do maranhense Flávio Dino tornar-se um avalista da falsa biografia do ex-presidente da Arena, o partido da ditadura.
A verdadeira biografia de Sarney está ligada a degeneração do poder judiciário, a sucessivas fraudes eleitorais, chicanas jurídicas, abusos de poder, golpe de 64, tentativa de calar a imprensa, apoio ao AI-5, relação com Brilhante Ustra, golpe contra Dilma, participação no governo Temer, apoio a recente campanha da extrema-direita, corrupção, mais corrupção, relação promíscua com empreiteiras etc. Está ligada a grilagem de terras, ao assassinato de camponeses, ao genocídio dos indígenas, ao péssimo IDH do Maranhão, Operação Tigre etc. Segundo Manoel da Conceição, fundador do PT, planejaram a morte dele e “Sarney esteve metido nisso”. E tudo isso é apenas a ponta de um iceberg.
A visita de Dino a Sarney é associada ao nome de Lula. É factível. O encontro, no entanto, passou pelos assuntos do Maranhão. Teriam falado sobre literatura, patrimônio histórico. Os sinais dessa cordialidade podem ser vistos também na programação do Sistema Mirante (que inclui a Globo local, controlada pelos filhos de Sarney) e na Assembléia. No poder legislativo maranhense, um correligionário de Flavio Dino (Othelino Neto) foi eleito presidente da Casa, no último dia 1º de fevereiro, com 100% dos votos. E três meses depois, no último dia 6 de maio, o mesmo Othelino foi reeleito, novamente com 100% dos votos. Reeleito no início de 2019, para um mandato que só começará em 2021. A oposição encarou o fato como absolutamente normal.
Percebe-se que estamos tratando de pessoas que pensam longe. Na hipótese de se aliar com o que restou do grupo Sarney, Flávio Dino poderia seguir enquadrando toda a classe política do estado, indicando, em 2022, um sucessor de sua absoluta confiança. Na próxima eleição estadual, estará aberta uma vaga no Senado. Hoje, pelo Maranhão, ela é ocupada por um ex-adversário de Flávio Dino, que depois se tornou aliado e hoje é dissidente. Nessa mistura de xadrez com ioiô fica a pergunta: para garantir um sucessor de muita confiança e pouca popularidade, o atual governador poderia oferecer na sua chapa uma vaga para um ex-adversário (ou adversária)? Se for assim, lembrando Garrincha, só faltaria “combinar com os russos”. Nesse caso, estamos apenas analisando possibilidades. As pontes existem.
O que o Vias de Fato sente-se na obrigação de realmente registrar e criticar, neste momento, é qualquer discurso que possibilite um atentado contra a história. É qualquer possibilidade de associação de oligarcas com a luta por democracia. Estamos falando de um valor, associado à justiça e liberdade. De algo que não pode se perder em retóricas. E nesse caso específico, os fins não justiçam o discurso. Uma das piores consequências desse tipo de erro, dessa narrativa inverídica, encontra-se hoje sentado na cadeira de presidente da república.
No Brasil; houve sim uma ditadura civil-militar a partir de 1964. E alguns dos seus cúmplices e protagonistas ainda estão vivos, posando de democratas. José Sarney – pra quem Jair Bolsonaro recentemente bateu continência – é um deles.
Fonte: Jornal Vias de Fato.
Publicado em agenciatambor.net.br
Em 30/06/2019