
Por: André Moreno*
Em meio a denúncias crescentes de conflitos agrários, trabalhadores rurais, sindicatos, movimentos populares e entidades estudantis se reuniram em uma audiência pública no município de Barra do Corda, a cerca de 450 km de São Luís.
O ato reuniu mais de 70 pessoas e representantes de 8 entidades, unidos pela indignação e espírito de resistência, em denúncia coletiva do agravamento da violência contra as comunidades camponesas e o avanço descontrolado da grilagem de terras na região.
O auditório Raimundo Ferreira de Araújo, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Barra do Corda (STTR), foi tomado pelas bandeiras da entidade, da União das Comunidades em Luta (UCL) e do Comitê de Solidariedade à Luta pela Terra (COMSOLUTE).
Tanto a mesa quanto as intervenções relataram um panorama alarmante de perseguições sistemáticas, ameaças de morte, prisões arbitrárias e assassinatos brutais de trabalhadores e lideranças comunitárias, operados sobretudo por agentes de estado em operações ilegais a mando de grandes latifundiários.
Um dos casos que marca o tom dessa denúncia foi o de duplo assassinato de Adonias Fernandes da Silva e Francisco Pereira da Silva, jovens camponeses executados no contexto do conflito. Imagens dos dois trabalhadores, acompanhadas da consigna “Presentes na luta”, foram projetadas durante a audiência, reafirmando o compromisso das comunidades em manter viva a memória de seus mártires.
“Guerra não declarada” em Barra do Corda
O caso de Barra do Corda é um caso exemplar de como a grilagem opera no Maranhão e no Brasil, partindo da documentação falsificada para a compra de agentes públicos, construindo um campo favorável para a ação de violência extrema contra terras tradicionais e comunidades camponesas.
Segundo organizações que acompanharam a audiência, esse processo ocorre com a omissão das autoridades e a conivência de setores do Judiciário, que frequentemente deixam de cumprir seu papel de proteção.
A ausência de uma resposta institucional tem agravado os conflitos fundiários e ampliado a vulnerabilidade das populações afetadas. Isso se dá, sobretudo, num contexto no qual, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Maranhão encontra-se entre os estados com o maior número de ocorrências de violência no campo. Apenas em 2024, foram registradas dezenas de casos de ameaças, despejos forçados e assassinatos, revelando uma verdadeira guerra silenciosa contra os que vivem e trabalham na terra.
Uma das presenças mais marcantes foi a de Assis Brito Costa, 71 anos, liderança sobrevivente do Massacre de Eldorado dos Carajás (ocorrido em 1996, no Pará), que participou da audiência e denunciou a atuação do Estado como próprio agente do conflito:
“Convidamos o Ministério Público — que sequer apareceu. A Defensoria veio, mas sabemos que o Estado é o verdadeiro provocador. Tudo começou com milicianos armados, muitos ex-policiais, que depois assassinaram nossos companheiros. Esta audiência é uma denúncia formal. Queremos que nossos advogados processem o Estado. Se ficarmos calados, eles continuam. Aqui tem terra ocupada desde 1840 e mesmo assim estão grilando. Tem grileiro até da Argentina vindo pra cá.”
A liderança da União das Comunidades em Luta (UCL), emocionado, reforçou o papel da organização popular na virada da situação na luta contra a grilagem de terras na região do Vale do Rio Gurupi:
“Existem hoje notícias boas. Existiram momentos difíceis, hoje estamos vencendo. Nós sofremos tiros dentro da nossa comunidade e duas crianças foram baleadas. Nossa comunidade era esquecida. Nós não tínhamos nada. A partir do dia que nos organizamos na UCL, conseguimos ser capazes de falar a verdade e de construir as coisas com nossas próprias mãos. Nós assim somos seres humanos. Somos uma classe e merecemos ser respeitadas. Nós estamos avançando na região do Gurupi e não vai ter nada que vai nos parar.”
A indígena Marta, do povo Canela, natural do município de Fernando Falcão, fez um contundente pronunciamento durante a audiência pública, em defesa dos direitos dos povos originários impactados pela grilagem promovida pela empresa Camboriú LTDA. Em sua fala, ela ressaltou a resistência de sua comunidade diante das investidas sobre suas terras tradicionais:
“Queremos poder rir também. Não vamos deixar que algo que é nosso seja roubado por quem vem de longe dizendo que lhes pertence. Se for preciso, vamos colocar esses invasores para correr. Nós somos índios e também somos donos daquele território.”
Um conflito de 16 anos, marcado por violência e omissão do Estado
Localizada a 60 quilômetros da sede do município de Barra do Corda (MA), a comunidade São Francisco ocupa uma área anteriormente pertencente à família Gadelha, de origem paraibana, que se intitulava proprietária da antiga fazenda “Pauliceia”. No fim dos anos 1990, os Gadelhas contraíram um empréstimo junto ao Banco do Brasil, oferecendo a propriedade como garantia. Com o não pagamento da dívida, a fazenda foi abandonada em 1998.
Desde então, sem oposição, o local passou a ser ocupado por famílias da região, consolidando-se como uma comunidade estável com cerca de 55 moradores fixos. A partir de 2014, as ocupações na área intensificaram-se, marcando o agravamento de um conflito fundiário que se arrasta há pelo menos 16 anos.
No âmbito do processo de interdito proibitório movido pela Associação dos Agricultores Familiares da Fazenda São Francisco contra a empresa Agropecuária Vale do Rio Corda existe uma decisão, expedida pela Vara Agrária da Comarca de Imperatriz, favorável a Associação. No centro do conflito, duas pessoas — Adaílton e Januária — se autoproclamam donos da terra, com base em supostos títulos de propriedade.
Segundo relatos da comunidade, ambos lideraram ações de intimidação, recorrendo ao uso de pistoleiros armados e à instalação de barricadas com o objetivo de expulsar as famílias que vivem na área há anos. Equipamentos pesados foram utilizados para desmatar cerca de 40 quilômetros da região, e relatos indicam que até o tratorista envolvido nas ações afirmava estar disposto a matar os ocupantes.
Lideranças locais já denunciaram diversas vezes às autoridades uma série de ameaças e intimidações por parte dos pistoleiros. Segundo Assis Costa, a delegacia de Barra do Corda recusou prestar ajuda, e sequer averiguou a situação de ameaça, enquanto a Secretaria de Meio Ambiente alegou não dispor dos recursos necessários para enfrentar a situação. Procurado, o Ministério Público afirmou que só poderia iniciar a investigação após 30 dias úteis.
Diante da omissão das autoridades locais, representantes da comunidade se deslocaram até São Luís em busca de apoio junto aos órgãos federais. A mobilização resultou na intervenção do IBAMA, que conseguiu interromper temporariamente os conflitos e frear o avanço do desmatamento na região.
Para Lindenberg Bezerra Monteiro, secretário de Política Agrária, Agrícola e Meio Ambiente do Sindicato, a resistência da comunidade é um exemplo de coragem diante do abandono estatal.
“Só o descaso do poder público pode gerar essa sequência de problemas. O fato de os moradores terem resistido é um ato de coragem e de luta. A gente do Sindicato apoia no que for preciso deles lá dentro — de transporte ao local para as reuniões”, afirmou.
A ação da milícia rural na região
A gravidade da situação é exemplificada por um episódio recente, cujas consequências ainda estão em andamento. Na madrugada do dia 10 de novembro de 2023, um policial militar, operando como pistoleiro na região, morreu carbonizado durante uma tentativa de incendiar as casas dos camponeses na zona rural de Barra do Corda.
Segundo a Polícia Civil, dez agentes — entre policiais militares e um policial penal — atuavam à paisana, divididos em três caminhonetes, a serviço de um fazendeiro local. Um dos veículos, que transportava a gasolina, colidiu e explodiu e o sargento Almir morreu carbonizado no acidente.
Os demais integrantes foram presos em flagrante e autuados por formação de milícia privada. As investigações revelaram que sete dos policiais eram de Balsas, um de Barra do Corda e outro, policial penal.
O grupo fazia parte de uma rede de grilagem de terras, liderada por um foragido conhecido como Evangelista Araújo Costa, acusado de utilizar agentes de segurança pública para invadir e ocupar ilegalmente áreas em disputa, além de obter propriedades rurais por meio da prestação de serviços armados no Tocantins e no Maranhão.
A atuação incluía intimidação armada, despejos forçados e uso de documentos falsos para legitimar invasões.
Em outro caso, de janeiro de 2025, os camponeses Vaciderlan e Rodrigo foram assassinados após resistirem à ação de pistoleiros nos municípios de Fernando Falcão e Mirador. As mortes provocaram a deflagração da Operação Tellus, que levou à prisão de diversos integrantes de um esquema criminoso de grilagem de terras. Segundo a polícia, o grupo fraudava registros para usurpar cerca de 20 mil hectares — avaliados em R$ 40 milhões — e contava com o apoio de milícias rurais para impor sua presença de forma violenta.
Desde então, as comunidades camponesas vêm sofrendo perseguições sistemáticas. Poucos dias antes da Audiência, na madrugada entre os dias 24 e 25 de maio, Antônio Fernandes da Silva, trabalhador rural da região, foi preso ilegalmente.
Mesmo após a revogação judicial do mandado de prisão, relativa ao caso do sargento Almir, policiais invadiram sua residência sem autorização legal, desconsideraram a decisão apresentada por sua esposa e o detiveram sob a acusação de “posse de arma de caça”. Durante a audiência, foi reiterado que a tentativa de intimidação aos trabalhadores não obteve sucesso, e a mobilização das comunidades apenas se fortaleceu.
*André Moreno é estudante de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão (UFMA)