
Fundado em 1972 no bairro da Liberdade, em São Luís (MA), o Boi da Floresta é muito mais do que uma manifestação folclórica do ciclo junino. Criado por mestre Apolônio Melônio e enraizado no Quilombo da Liberdade – comunidade reconhecida oficialmente pela Fundação Palmares, o grupo é símbolo da força e identidade da cultura popular maranhense; um instrumento de transformação social em um dos maiores territórios quilombolas urbanos do Brasil.
Durante entrevista ao programa Dedo de Prosa, da Agência Tambor, Nadir Cruz — atual liderança do boi e filha adotiva do Mestre Apolônio Melônio — falou da tradição da manifestação, sua resistência e destacou a trajetória do grupo de Bumba Meu Boi, marcada por um ciclo que reflete a própria vida. “(O Boi) é como a gente: nasce, amadurece e transforma-se”, afirma. Nadir explica que tudo começa no Sábado de Aleluia, com os ensaios, segue pelo batizado, que é carregado de fé e promessa, e culmina com a morte do boi, no final de setembro. Depois, ele renasce em janeiro, mais forte. Para ela, a religiosidade e a ancestralidade são o que sustentam o boi como patrimônio imaterial.
A história do Boi da Floresta confunde-se com a do próprio bairro da Liberdade. Mestre Apolônio, vindo do interior nos anos 1930, foi estivador e trabalhador rural, até encontrar na brincadeira do boi uma forma de reunir amigos e expressar sua herança cultural. Com o apoio do padre italiano Giovanni Gallo, criou o grupo com 400 cruzeiros emprestados e o sonho de ter um boi no local em que morava. Esse desejo, como lembra Nadir, virou missão coletiva. “Apolônio nos ensinou a gostar do sonho dele. Hoje o boi é um organismo vivo, que pulsa com o território.”
Entre tradição e futuro: o papel do Boi da Floresta
Com mais de quatro décadas de atuação no grupo, Nadir assumiu gradativamente a liderança deixada por Apolônio — um legado de sabedoria, coragem e independência cultural. “Ele dizia: ‘Não fiz boi para governo sustentar.’ E isso virou princípio para nós: manter a essência do boi viva, com autonomia e respeito às raízes”, conta. Sua trajetória enquanto mulher preta e moradora da periferia também marca uma virada importante na presença feminina no comando do grupo. “O boi era masculino. Cheguei em 78, com 12 anos, e fui acolhida. A presença das mulheres foi crescendo aos poucos. Hoje, somos protagonistas também.”
O barracão do Boi da Floresta, sede do grupo, também é centro de formação e acolhimento. Lá se realizam oficinas de bordado, confecção de caretas e chapéus, informática para idosos e ações de inclusão digital. Tudo é feito com recursos captados por editais e com o trabalho voluntário de moradores. “A cultura é motor de desenvolvimento. Dentro do nosso barracão estão as sementes da transformação social”, diz a líder.
No Quilombo Urbano da Liberdade, o boi é apenas uma das muitas expressões de uma comunidade vibrante, marcada por práticas de solidariedade e saberes ancestrais. Ali, os moradores trocam comida na Sexta-feira Santa, defumam as casas com ervas, compartilham refeições nas calçadas no Réveillon e cultivam laços fortes entre vizinhos. É um território onde fé, cultura, economia e resistência se entrelaçam. “A gente se reconhece pelo cheiro do incenso, pelo jeito de acolher. É um modo de viver que sustenta o quilombo. E o Boi da Floresta pulsa junto com ele”, afirma Nadir. Esses vínculos explicam o reconhecimento do território não apenas pela cor da pele, mas pela força coletiva que preserva memórias, saberes e pertencimentos.
Mesmo com dificuldades — ausência de apoio institucional, preconceito e escassez de recursos — o grupo se mantém firme. “Não temos amigos políticos. Temos voz, temos história e estamos vivos”, afirma. Segundo ela, mais de 140 pessoas fazem parte do grupo atualmente, a maioria do próprio bairro, reforçando os laços entre cultura e território.
Ao final da entrevista, Nad resumiu com clareza o papel do Boi da Floresta: “Nosso objetivo não é ter 500 pessoas no arraial. Nosso foco é cuidar de quem está conosco no barracão. Porque quando a cultura se movimenta, todo o entorno se transforma.”
A entrevista completa com Nadir Cruz foi ao ar no programa Dedo de Prosa, da Agência Tambor. confira o bate-papo na íntegra.