Roças destruídas, incêndios criminosos, tiroteios, ameaças e drones usados para monitorar a comunidade. Essas são algumas das violências enfrentadas pelo Quilombo Marmorana/Boa Hora 3, no município de Alto Alegre do Maranhão, no estado do Maranhão. No território moram mais de trinta famílias que, em março de 2023, foram beneficiadas com medidas cautelares da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) “após identificar que se encontram em situação de grave e urgente risco de lesão irreparável de seus direitos”. No entanto, segundo lideranças da comunidade, nada foi feito pelo Estado para garantir a segurança da comunidade desde então.
“Esse homem chegou, cercou, desmatou, queimou casas. E, até hoje, ele está lá dentro! No lugar onde deveríamos estar plantando nossa roça, colocou seu gado”, relata Raimunda Nonata, uma das lideranças da comunidade sobre uma das invasões ocorridas no território. “O que queremos das autoridades é nosso território livre, para que possamos trabalhar e viver em paz”, enfatiza ela.
Os mais de dois mil hectares que correspondem ao quilombo são habitados há mais de cem anos por seus moradores. O território fica localizado no município de Alto Alegre do Maranhão, a cerca de 200 km da capital, São Luís. O rio Peritoró atravessa o quilombo que possuía diversas produções agrícolas dos trabalhadores rurais.
O território é reconhecido e certificado como remanescente de quilombo pela Fundação Cultural Palmares (FCP) desde 2007. Já o processo de titulação está em andamento com base no Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) e Decreto Nº 4.887/2003, no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) através do processo nº 54230.004084/2006-70 desde 2006.
Segundo a Raimunda Nonata, o processo no Incra ficou parado por seis anos. “Se tivéssemos resolvido a questão da titulação, não estaríamos passando por esta situação”, afirma a liderança quilombola.
O Mamorana/Boa Hora 3 vem sofrendo com ameaças constantes por parte de fazendeiros da região, desde o ano de 2009. Os casos sempre envolveram diretamente criadores de gado bovino da região do médio Mearim, no Maranhão.
Em fevereiro de 2022, em mais um episódio de violência, um empresário identificado como Antônio Márcio de Sousa Oliveira, se dizendo proprietário de uma área dentro do Quilombo Mamorana/Boa Hora 3, invadiu e desmatou uma área de mata nativa de mais de 60 hectares utilizadas pelas famílias para fins de plantio.
Os capangas do empresário também teriam restringido a circulação dos moradores na comunidade, impedindo-os de acessar roças e promovendo ataques violentos contra quem resistisse. A situação levou lideranças do quilombo a registrarem um boletim de ocorrência na delegacia de Alto Alegre do Maranhão devido às ameaças promovidas pelo empresário.
As ameaças são recorrentes. Em outras ocasiões, os quilombolas já tiveram casas queimadas, roças destruídas, reservas desmatadas, poços artesianos entupidos e o açude cercado. Segundo relatos, em 2022, “homens armados teriam sido utilizados para intimidação, além de drones”. Até uma mulher grávida de seis meses teve a casa incendiada. Os moradores também relatam casos de ameaças com armas de fogo apontadas para a cabeça das pessoas.
Em outubro 2022, após denúncia na delegacia de Alto Alegre do Maranhão (0802582-22.2022.8.10.0128), o Tribunal de Justiça do Maranhão, de São Mateus (MA), determinou uma ação integrada entre a Polícia Civil e a Polícia Militar do Maranhão, com apoio da Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema), no território, que averigou desmatamento ilegal de 73 hectares de mata nativa e de palmeiras de babaçu, realizado por Antônio Márcio. Ele não possuía a licença de autorização de supressão vegetal e foi preso em flagrante pelos crimes ambientais. O empresário pagou uma fiança no valor de R$30 mil e saiu em liberdade.
O caso foi judicializado na Vara Federal de Bacabal (Processo: 1058163-74.2022.4.01.3700) com o último despacho feito no dia 15 de junho, para Inspeção Judicial no Quilombo Boa Hora 3/Marmorana, de acordo com os artigos 481, 482 e 483, do Código Processo Civil.
Em maio de 2023, em entrevista ao jornal da Agência Tambor, Raimunda Nonata Costa da Silva e Jesusmar Costa da Silva, diretores da Associação de Produtores e Produtoras Rurais Marmorana/Boa Hora III, relataram que o empresário Antônio Márcio de Sousa Oliveira instalou placas de “propriedade privada” no território.
“O fazendeiro está impedindo que os quilombolas cultivem suas terras! E isso impossibilita a sobrevivência dessas comunidades, que se sustentam da agricultura”, disse Raimunda. “A gente fica com medo, temos sempre que andar em grupo. As crianças estão traumatizadas por conta dessa pressão que estamos sofrendo! Nós queremos que alguém tome providência sobre isso, para que a gente tenha a nossa liberdade para trabalhar em paz e com segurança”, afirmou a quilombola.
Para Jesusmar Costa, essa situação “é um terror”, porque coloca em risco a vida de muitas famílias. “Nós queremos que as autoridades tragam uma solução. Está sendo muito difícil!. Ficamos com medo de entrar em nossos roçados, porque eles apontam as armas para a gente. Estamos sem trabalhar, precisamos colocar comida na mesa”, relatou.
O Quilombo Mamorana/Boa Hora 3 é um dos 583 territórios quilombolas situados na Amazônia Legal que aguardam titulação. O Maranhão é o estado que mais possui territórios aguardando a finalização do processo, com 381. A titulação envolve seis etapas, sendo que o quilombo passou apenas pela primeira, que é a certificação emitida pela FCP. Ainda são necessárias outras cinco etapas: elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), publicação do RTID, portaria de reconhecimento, decreto de desapropriação e a titulação.
Os moradores vivem da agricultura familiar de subsistência e do extrativismo, principalmente do coco babaçu. Porém, o uso coletivo das terras pelas comunidades quilombolas sofre todo tipo de violência, sobretudo por pessoas que adquirem títulos de propriedade das terras, e que impedem o acesso dos quilombolas às áreas de caça, coleta e plantio, indispensáveis ao sustento das famílias tradicionais.
Caso internacionalizado
Em fevereiro de 2023, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) emitiu resolução concedendo medidas cautelares em favor da comunidade. À época, a CIDH informou que o governo do Maranhão enviou respostas ao órgão, mas que não foram suficientes.
De acordo com a comissão, a situação de risco em que vivem os quilombolas não foi alterada e é necessário medida de proteção coletiva. Além disso, a comissão também alegou que não havia informações sobre o andamento das investigações de ataques violentos ocorridos dentro do território.
Por isso, a CIDH pediu que o Estado: adote as medidas necessárias e culturalmente adequadas; assegure o respeito aos direitos dos quilombolas; crie medidas que sejam desenvolvidas após diálogo com os comunitários e informe sobre as ações implementadas.
Antes, em 22 de novembro de 2022, movimentos e organizações sociais do Maranhão divulgaram uma nota conjunta denunciando uma série de ataques sofridos pelo território quilombola Marmorana/Boa Hora 3. O documento foi assinado por 17 entidades. Nela, as organizações afirmam que a situação do território é muito grave e está colocando os quilombolas em condição de vulnerabilidade.
“Exigimos que o Governo do Estado do Maranhão e o Governo Federal adotem medidas para proteger a vida, a saúde e a integridade pessoal de todos os moradores do Território Quilombola Boa Hora 3/ Marmorana, Alto Alegre do Maranhão, a conclusão do processo de titulação quilombola, que inicie uma investigação ampla e célere dos graves crimes cometidos contra os quilombolas”, disse a nota.
A reportagem da Agência Tambor apurou que, até o momento, nenhuma medida efetiva foi tomada para solucionar o caso.
A Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultoras e Agricultores Familiares do Maranhão (FETAEMA), que acompanha de perto a situação, também cobrou do governo federal, em audiência pública com a CIDH, em Brasília (DF), que medidas imediatas de proteção aos moradores do Marmorana/Boa Hora 3. A presidenta da entidade, Angela Silva, fez uma declaração sobre o assunto nas redes sociais da FETAEMA.
“Solicitamos urgência na desapropriação, na segurança para a comunidade quilombola e na segurança da saúde mental das famílias, que lá se encontram”, enfatizou Angela Silva, presidenta da entidade.
Encontro
Para tratar sobre a questão do quilombolas de Marmorana/Boa Hora, e outros casos de conflitos no campo maranhense, a Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do Maranhão (FETAEMA) e seus sindicatos filiados realizaram o 1º Encontro de Comunidades em Conflitos Agrários e Socioambientais no Maranhão.
A reunião aconteceu de 12 a 14 de junho, na sede da FETAEMA, na região metropolitana de São Luís. Cerca de 400 lideranças ameaçadas, de diversas comunidades do Maranhão, estiveram presentes.
O objetivo foi apresentar as demandas aos representantes do governo federal, por meio do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, do Ministério da Igualdade Racial, do Ministério dos Direitos Humanos e da Secretaria Geral da Presidência da República. E, também, dialogar com o governo do Maranhão, por meio da Secretaria dos Direitos Humanos e Participação Popular, da Secretaria do Meio Ambiente e Recursos Naturais e da Secretaria de Segurança Pública. Além destes, também houve conversa com representantes do Conselho Estadual em Defesa dos Direitos Humanos, da Comissão Estadual de Combate e Prevenção à Violência no Campo e na Cidade, entre outras organizações presentes.
Segundo o diretor de Política Agrária da FETAEMA, Edimilson Costa, durante o evento, as lideranças do Quilombo Marmorana/Boa Hora 3 receberam a informação de que o empresário Antônio Márcio teria colocado cercas elétricas na área que invadiu no território.
O outro lado
Procurado pela Agência Tambor, Antônio Márcio de Sousa Oliveira não respondeu à reportagem. No perfil de uma empresa da qual é proprietário, foi postada uma mensagem que diz que “não tem nenhum tipo de envolvimento com o caso” e que ele retornaria para falar da situação.
Já por parte do governo do Maranhão, a Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular (Sedihpop) disse acompanhar o conflito na comunidade e que “adota medidas visando a sua resolução”.
Conflitos no interior do Maranhão
A violência no Quilombo Mamorana/Boa Hora 3 é só um dos diversos conflitos socioambientais e agrários no interior do Maranhão. Em 2022, de acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o estado, junto com Rondônia, lidera o ranking de assassinatos no campo por disputa de terras, com sete mortes cada estado.
A CPT também revela que, no ano passado, o Maranhão teve, pelo menos, 178 conflitos envolvendo terras/territórios. Esse tipo de violência inclui quilombolas, trabalhadores rurais e indígenas.
Para Andréia Silvério, integrante da coordenação nacional da CPT, “a situação desses povos nos traz um retrato do que foi a omissão e a conivência do governo federal [anterior] com a situação dos conflitos e com a violência que atacava diretamente as comunidades”.
O antropólogo Igor de Sousa, autor do livro Movimento Quilombola no Maranhão, destacou que a naturalização da violência é pedagógica, “pois estimula a prática como plausível e amarra comunidades empobrecidas a círculos de privação e medo”. O pesquisador também aponta que “é notório perceber a associação direta entre graves conflitos fundiários, violência no campo e impunidade à questão racial”.
“É fundamental a investigação do poder público, pois o Maranhão pode continuar a ser um cemitério a céu aberto de seus povos e comunidades tradicionais”, analisa Igor. O antropólogo acrescenta que “o cenário é de imposição da fome e migração forçada e isto também é uma forma explícita de racismo”.
Texto por Info Amazônia e Agência Tambor