Geni é personagem da Opera do Malandro, de Chico Buarque de Holanda Trata-se de uma situação trágica, e a naturalização das tragédias é, por si só, um escândalo.
O Brasil tem sido, há mais de uma década, o país que mais mata pessoas trans e travestis ano após ano.
No Brasil, uma pessoa trans é assassinada a cada três dias. Em 2023, houve um aumento nas mortes de pessoas trans, com os estados do Rio de Janeiro e Paraná dobrando os números em relação ao ano anterior.
Essas informações foram veiculadas na Agência Brasil e no Jornal Brasil de Fato.
Esses dados importantes foram citados no evento “Gênero para além das fronteiras: tendências contemporâneas na América Latina e no Sul Global”, realizado na UFMA entre 16 e 18 deste mês de outubro.
O encontro foi organizado pelo Grupo de Pesquisa Epistemologia da Antropologia, Etnologia e Política (Gaep) da UFMA, com apoio de várias instituições.
Foi nesta atividade acadêmica que a artista e mestranda em História Tertuliana Lustosa, uma mulher trans, fez uma palestra que incluiu uma performance com cena de nudez.
E a repercussão?
Um vídeo de poucos minutos, que mostra uma mulher que durante a palestra ficou de costas, subiu na mesa, com a saia levantada e a bunda arrebitada, rapidamente ganhou grande repercussão nas redes sociais.
A imagem, dentro de uma universidade pública, caiu sob medida nas plataformas comerciais e alienantes, com seu natural desinteresse de entender os contextos.
A mídia de mercado, sempre ávida por expor carne humana em seu “açougue informativo”, não perdeu a chance de repercutir e explorar a imagem e a polêmica, mantendo a superficialidade.
Leia também: Secretária da Mulher do governo Brandão é aliada de prefeito condenado por estupro
Moralistas de plantão, sempre prontos a defender os “bons costumes”, reagiram com “indignação” diante do gesto da palestrante.
Tertuliana Lustosa explicou, num vídeo, após sua fala na UFMA, que realiza em suas palestras a mesma performance que faz em seus shows. Para Tertuliana, não deve haver um fosso separando a realidade cotidiana do ambiente acadêmico.
Podemos refletir! A cantora Anitta pode ser convidada a dar uma palestra de 40 minutos para um público adulto e, ao longo de sua fala, pode levantar e rebolar para mostrar dois minutos do seu show. Isso é inaceitável?
Escândalos e malandragens na UFMA
Em 1965, Nelson Rodrigues escreveu uma peça de teatro intitulada Toda Nudez Será Castigada. Nela tem uma personagem chamado Geni, uma prostituta.
Em 1978, Chico Buarque de Holanda fez uma música chamada Geni e o Zeppelin. A canção fez parte da trilha sonora da peça Opera do Malandro e trata das desventuras de uma travesti.
Se o papo passa por um suposto “escândalo na UFMA”, lembramos das genis e de malandros envolvidos nas tramas recentes dessa universidade maranhense.
É preciso dizer que esta mesma Universidade Federal do Maranhão é uma instituição que vem sendo comandada há décadas por uma oligarquia, com a cumplicidade venal da mídia conservadora do estado.
O conluio da elite local em torno da nossa universidade pública causa prejuízos sociais evidentes, inclusive a docentes e discentes.
Sem concessão ao ódio
Feito o registro fundamental sobre a história recente da UFMA, que tem sim ingredientes escandalosos, é também importante criticar com veemência a postura da atual direção da mesma universidade diante do lixo midiático envolvendo Tertuliana.
A UFMA lançou uma nota onde informou estar “averiguando o ocorrido e tomará as providências cabíveis, após o comprometimento de ouvir todas as vozes”.
Averiguando? Performance artística – boa ou ruim, que agrada ou desagrada – não é objeto de averiguação. Palestra de eventos feitos à luz do dia não é assunto para investigação de uma universidade pública.
A Comissão Organizadora do evento, ligada ao GAEP, divulgou uma nota, no dia 17 de outubro, tratando do assunto e que, evidentemente, pode encerrar a questão no âmbito acadêmico.
Ou a direção da UFMA vai se aliar aos ataques que os conservadores vêm direcionando às universidades brasileiras? Vai constranger as possibilidades de subversão pedagógica dentro dos seus muros? Vai exacerbar o desconforto natural e esperado? Vai jogar pedra na Geni?
O papel de uma instituição de ensino superior é se opor aos velhos apedrejamentos moralistas, e não dar ouvidos a bandalhos. Sobre o assunto aqui tratado, é o ódio e o oportunismo que precisam de limites.