Assumir a tarefa de comunicar o pesadelo não como àqueles que veem a profecia do fim dos tempos se confirmar, mas como àqueles que desejam compartilhar “ideias para adiar o fim do mundo”.
Temos ampliado processos de escuta no ETC sobre questões ambientais e climáticas por entender a urgência desse debate e a necessidade de elaborarmos estratégias de mitigação e enfrentamento à crise ambiental de maneira coletiva. É fundamental que possamos reconhecer que há formas de vida em sociedade que colocam em risco a continuidade da vida em sociedade, paradoxal, não é mesmo? E aqui começa o nosso pesadelo.
Entendo pesadelo como aqueles sonhos perturbadores que trazem à superfície visões importantes de partes íntimas e muitas vezes ocultas de nós mesmas, estando muitas vezes impregnados de medo, ansiedade e angústia. É como uma denúncia de que alguma coisa errada não está certa.
Em O bem viver, Alberto Acosta nos brinda com uma escrita, como ele mesmo aponta, que é uma oportunidade para imaginar outros mundos. E aqui, definitivamente não se trata de um projeto de ficção que projeta a nossa existência em outros planetas da galáxia. Como se fosse possível destruir todas as condições de vida na Terra e simplesmente tomar um uber intergaláctico para dar continuidade ao nosso projeto civilizatório em Marte. Ao longo do seu livro, ele demonstra como, na verdade, o próprio projeto civilizatório eurocêntrico pautado na colonialidade é um nó central nessa rede de problemas.
A defesa de um projeto em torno do bem viver aponta para a necessidade de recriação do nosso mundo a partir do âmbito comunitário, dissolvendo dicotomias como humanidade vs natureza. Nesse sentido, a comunicação como uma “ação de sempre, infinitamente, instaurar o comum” pode contribuir com a sua organização simbólica.
E aqui mais uma vez trago aproximações com a pesquisa que venho desenvolvendo. A construção de redes e comunidades que estamos nos propondo a fazer através do ETC HUB é orientada também por estes fundamentos. Concordamos com Acosta que não podemos esperar uma solução ‘técnica’ para as crises que atravessamos, e com Sodré quando diz que a comunidade não é um espaço dado, “não é uma substância compartilhada por sujeitos da consciência (…) não se institui originariamente a partir de uma reciprocidade contratual (como queria Rosseau), porque ela mesma já é a condição de possibilidade de qualquer troca — uma condição baseada na entrega total (a doação originária, a alienação radical) do indivíduo a uma dinâmica de diferenciação e aproximação.” Para vincular-se, portanto, é necessário estar aberta à perda de si, em uma experiência de desapropriação que segundo Esposito força o sujeito a alterar-se.
Ampliando de processos de escuta
Um texto é sempre uma experiência polifônica, onde a quem escreve cabe a tarefa de colocar múltiplas vozes em diálogo, como um maestro em uma orquestra que vai coordenando todos os instrumentos em busca de uma harmonia.
Nesse sentido, convocamos uma voz que pode nos guiar na compreensão da realidade de São Luís em relação às questões ambientais. Trata-se de um goiano radicado no Maranhão que nasceu em uma cidadezinha (porquê muito pequena) do interior do Goiás, onde, segundo ele, corre um rio lindo e banhável até hoje. Enquanto ele reconstituía os passos que lhe trouxeram à São Luís em nossa entrevista, lembra que o clima quente e úmido foi uma das coisas que mais lhe atraiu, além das pessoas e uma oportunidade de trabalho na Universidade Federal do Maranhão. 30 anos depois, a cidade já não é mais a mesma, o clima também não.
Há 30 anos atrás, quando eu cheguei aqui, São Luís era uma cidade muito mais fresca do que ela é hoje. E se vocês conversarem com os pais e avós de vocês vão perceber isso, eles estavam aqui há 30, 40 anos atrás quando a cidade era mais úmida.
Horácio Antunes, é professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMA e também do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais. Ele lidera o Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente (GEDMMA) e tem se dedicado intensamente à questão ambiental com foco especial nos conflitos ambientais relacionados a grandes projetos de desenvolvimento e os efeitos nefastos em povos e comunidades tradicionais. Outro aspecto que chama atenção é que seu currículo inclui a sua atuação política que teve início ainda na juventude, muito antes da formação universitária e da experiência docente.
Mas ele destaca que o seu trabalho enquanto pesquisador atualizou em grande medida a sua prática política, criando a necessidade de atuação junto aos grupos com os quais tem realizado suas pesquisas e demonstra que ao longo dos 20 anos de existência do GEDMMA essas práticas vem se consolidando como uma metodologia de pesquisa do grupo:
Não há como você manter uma relação distanciada com essas comunidades, é uma característica minha e de praticamente todas as pessoas do grupo, a gente vem com cargas de militância, em alguns casos partidária, outros não, em movimentos sociais desde as nossas origens anteriores à universidade. Isso acaba conduzindo um trabalho que tem um cuidado enorme de não perder o rigor científico na atividade de pesquisa, respeitando os métodos de investigação, tendo muito cuidado na divulgação dos resultados que são apresentados, procurando checar e analisá-los, mas ao mesmo tempo, a atividade de pesquisa nos conduz a uma atuação junto àqueles grupos sociais com os quais estamos pesquisando.
E mais do que isso, no correr desses 20 anos, a gente tem construído uma metodologia de atuação na pesquisa e na extensão que implica uma forte participação dos grupos sociais com os quais nós fazemos pesquisas, e quando eu digo: “com os quais nós fazemos pesquisa” é porque esses grupos não são tidos por nós como grupos pesquisados, mas grupos que participam. Eles ajudam a gente, por exemplo, a definir os objetivos, a construir os projetos de pesquisa que nós realizamos, eles participam dos processos de coleta de dados, então tem uma dimensão participativa e dialógica que a gente procura estabelecer com muita intensidade.
Um dos processos mencionados pelo professor Horácio teve início em 2003, quando comunidades da Zona Rural de São Luís começaram a demandar pela construção de uma Reserva Extrativista, a Reserva Extrativista Tauá-Mirim, tendo o grupo começado seu envolvimento no ano seguinte. Na reportagem abaixo, há mais informações sobre o processo de luta e construção da Resex, ainda não reconhecida oficialmente pelo Governo Federal, mas percebida pelas comunidades e por pesquisadores, incluindo o professor Horácio, como uma estratégia capaz de garantir a conservação ambiental da área, aumentar a fiscalização dos empreendimentos já instalados ao seu redor e garantir a execução de políticas públicas hoje negadas ao território.
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São Luís, uma cidade de passagem.
São Luís é um município brasileiro situado no estado do Maranhão, localizado na ilha de Upaon-Açu, no Atlântico Sul, entre as baías de São Marcos e São José de Ribamar, no Golfão Maranhense. Com uma população estimada de 1.037.775 de habitantes e uma extensão territorial de 583,063 km², segundo dados do último censo do IBGE (2022). A história da sua fundação é atravessada por controvérsias e muitas lacunas até hoje. Ainda que uma versão “oficial” possa afirmar que São Luís é a única capital do país fundada por franceses, na virada do século a historiadora Maria de Lourdes Lauande Lacroix apresentou uma tese que reaqueceu o debate historiográfico e colocou em cheque a fundação francesa. Entre atribuir a fundação da cidade à franceses, holandeses ou portugueses (povos colonizadores), me pergunto: E os povos que já habitavam essas terras antes da colonização?
Quando questionei ao professor Horácio sobre a noção de desenvolvimento presente nos projetos estudados por ele e quais as perspectivas de futuro projetam para São Luís, ele afirma que a cidade tem sido pensada pelos planejadores locais como uma cidade de passagem, de vocação portuária.
Um lugar por onde as riquezas passam deixando um lastro de consequências nefastas na vida das comunidades que habitam esses territórios há centenas de anos. Segundo ele trata-se da continuidade de um projeto de desenvolvimento que tem raízes profundas na ditadura empresarial militar brasileira através de programas como o PIN (Programa de Integração Nacional) que tinha como objetivo a construção de grandes rodovias como a Transamazônica e a Cuiabá-Santarém. A Amazônia era percebida como um grande vazio territorial, demográfico.
e que professor Bartolomeu que é do nosso grupo chama atenção que não era apenas um vazio demográfico mas cultural, também, porque desconsiderava povos locais e seus modos de vida e suas formas de organização
pelo então presidente, Emílio Garrastazu Médici. Além do Programa Grande Carajás que pensou a Amazônia como uma grande estrutura cheia de riquezas a serem exploradas e incorporadas à lógica capitalista brasileira e mundial.
Esse modelo que a gente chama a grosso modo de mina-ferrovia-porto se desdobra num projeto de desenvolvimento regional que vai para além da mineração e que traz através de incentivos fiscais, apoios governamentais. O programa Grande Carajás, por exemplo, era interministerial, então envolvia várias áreas do governo na sua ativação e promoveu uma verdadeira transformação da paisagem da Amazônia oriental brasileira. Nesse programa São Luís passa a ter um papel fundamental que é ser uma área de passagem. É um lugar de passagem de riquezas que chegam, são produzidas no interior do Maranhão, Pará e outros estados. E mais recentemente a partir de 2015 com a criação do MATOPIBA que é a faceta para o Cerrado do que foi o programa Grande Carajás para a Amazônia, na tentativa de incorporar também o que foi o Cerrado desses quatro estados à dinâmica capitalista, mas agora não tendo a mineração como eixo e sim o agronegócio, então uma forte expansão da atividade agropecuária, tudo isso passa por São Luís.
São Luís tem uma situação privilegiada em termos desse projeto que é o fato de nós estarmos às margens de uma baía muito profunda que permite a atracação de navios muito grandes, e por ter o porto brasileiro mais próximo da Europa, mais próximo do canal do Panamá que dá acesso ao oceano pacífico de rotas comerciais mundiais. Então São Luís passa a ser percebida pelos planejadores locais como tendo o seu desenvolvimento associado à expansão portuária. As riquezas produzidas no Maranhão e estados vizinhos passam por aqui para ser exportadas e isso tem uma consequência dramática para as comunidades que estão na zona rural de São Luís, porque enquanto esses projetos pensam São Luís como tendo uma vocação portuária, essas comunidades que estão localizadas na zona costeira e nas margens, algumas há séculos, outras há décadas, foram atraídas para essa região por ser muito favorável à pesca e também pela proximidade com a capital do estado e o mercado consumidor. Uma produção de peixe significativa, terras boas e férteis favoreciam também uma atividade econômica polivalente baseada na pesca, na agricultura e na extração vegetal da juçara, do buriti e de outros produtos e isso faz com que haja um confronto quanto à vocação do município.
O conflito entre povos e comunidades tradicionais, o Estado e os interesses do grande comércio internacional guardam em si um conflito também sobre a noção de natureza, aponta o professor Horácio. Para ele, se de um lado lideranças comunitárias como Dona Máxima, que teve sua vida ceifada pela poluição do ar provocada pelas atividades industriais em seu território, defendem que a natureza é mãe e é necessário manter uma relação respeitosa com ela, caso contrário, ela não vai fornecer o que é preciso para sobrevivermos, de outro lado os planejadores estatais e empresariais acreditam que a natureza é um espaço a ser ocupado e suas as características biológicas e sociais precisam ser eliminadas para garantir a implementação de grandes empreendimentos.
O que esperar do futuro de São Luís que está sendo construído hoje?
Se tomarmos como referência marcos regulatórios sobre a cidade como a Lei de Zoneamento ainda em processo de elaboração e o Novo Plano Diretor, aprovado em abril de 2023, com forte rejeição de diversos grupos, entidades e organizações da sociedade civil, que veem no projeto um mecanismo de agravamento dos problemas ambientais, além de aumentar a exposição de comunidades rurais à violência, as perspectivas não são animadoras. A São Luís do futuro está sendo planejada sem considerar os processos de transformação urbanísticos ocorridos na cidade, as características locais e territoriais e sobretudo as pessoas.
Para o professor Horácio o planejamento público da cidade é um planejamento de destruição e a tendência é de ampliação do caos:
Então a tendência que a gente tem hoje daqui há dez anos é ter um caos maior do que o que nós vivemos, não existe, hoje, a partir do planejamento que está sendo realizado pelos órgãos públicos aqui no Maranhão e pela intervenção dos grandes empreendimentos econômicos que têm interesse nessa área, uma perspectiva de uma cidade melhor do que a que vivemos, pelo contrário, a tendência é termos praias mais poluídas, uma cidade com problemas sanitários maiores, com problemas viários e de mobilidade mais intensos do que os que temos hoje e com uma zona rural menor, o que implica uma cidade mais quente do que a que temos hoje.
É urgente que possamos reflorestar nosso imaginário de forma comunitária, a crise civilizatória que atravessamos não é possível ser resolvida pelo sujeito ensimesmado neoliberal. Tecer e fortalecer redes dispostas a elaborar ideias que nos permitam adiar o fim do mundo tem sido nosso principal objetivo. Vamos juntas?
* O título desse texto é inspirado e faz alusão ao episódio #255 Pesadelo levado à sério do podcast Imposturas Filosóficas.
Este conteúdo foi produzido pelo Grupo de Pesquisa ETC (Comunicação, Tecnologia e Economia) da UFMA para seu projeto de extensão em divulgação científica.