Por IGOR FELIPPE SANTOS*
31/03/2021
Embora os movimentos de Bolsonaro pareçam contraditórios, são complementares na medida em que alimenta o conflito entre instituições
A reforma ministerial de Jair Bolsonaro, que trocou seis ministros em um mesmo dia, faz parte do processo de transição do governo, que começou no final do ano passado, que tem como marco o fechamento do cerco em torno das relações da família com Fabrício Queiroz e dos inquéritos abertos no STF. O governo Bolsonaro começou na onda antipolítica da campanha eleitoral de 2018. Consolidou-se um tripé de sustentação do governo, que se convencionou a caracterizar como os núcleos ideológico (os olavistas), o jurídico-militar e o econômico. O presidente era o símbolo da ordem e autoridade, o então ministro da Justiça Sergio Moro estandarte da luta contra a corrupção e o superministro da Economia Paulo Guedes como fiador do programa neoliberal da austeridade fiscal e das privatizações.
Um grupo de militares ocupou postos dentro do Palácio do Planalto, como o general Carlos Alberto dos Santos Cruz na secretaria de Governo, e em ministérios estratégicos, como em Minas e Energia e na Infraestrutura. Foi escalado um time de olavistas para áreas-chave, como no Ministério da Educação e nas Relações Exteriores, referências dos grupos mais extremistas que estão na linha de frente na luta ideológica nas redes sociais, alinhados ao projeto político-ideológico da extrema-direita.
Está em curso mudanças na forma de operação do governo Bolsonaro nesses dois anos e quatro meses, com a saída de ministros, com a mudança da relação com o Congresso Nacional, com a reação do Poder Judiciário e com o impacto da pandemia de coronavírus, que abre diferentes perspectivas.
O núcleo ideológico, que atuava como os “cachorros loucos” do bolsonarismo, com protestos de rua, ataques aos inimigos e luta ideológica nas redes sociais, tem perdido protagonismo no último período. Até o ano passado, esse núcleo estava na linha de frente, puxando a corda, fazendo “testes” e limpando o terreno para as ações de Bolsonaro.
No começo da pandemia de coronavírus, quando Bolsonaro assumiu a linha negacionista, atacou governadores e boicotou as políticas de isolamento social, que gerou uma forte reação na sociedade e seu isolamento institucional, esse segmento saiu às ruas acusando uma manobra para derrubar o presidente com protestos em símbolos militares, alimentando a sombra de golpe que subsiste neste governo.
Depois do ataque com fogos sobre o STF de um grupo extremista, foi aberto o inquérito dos atos antidemocráticos, com uma operação de busca e apreensão e decreto de prisão de seis investigados, como da ativista de extrema direita Sara Giromini, conhecida como Sara Winter. Foi instaurado também o inquérito das fakenews, com o objetivo de investigar denunciações caluniosas e ameaças contra ministros da Corte.
No quadro de recrudescimento do conflito entre STF e grupos bolsonaristas de extrema-direita, o ministro da Educação Abraham Weintraub caiu e Sara Winter ficou presa por 10 dias, libertada sob medidas cautelares com tornozeleira eletrônica. Sem qualquer manifestação de solidariedade da parte do presidente, ela manifestou publicamente ressentimento pelo abandono político.
Essa crise precipita com a prisão do policial militar aposentado Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro e amigo do presidente Jair Bolsonaro, em Atibaia, no interior de São Paulo, na casa do advogado da família Frederick Wassef, figura com trânsito no Palácio da Alvorada, residência oficial da Presidência, e em cerimonias no Palácio do Planalto.
Desde então, Bolsonaro passou a guardar uma “margem de segurança” do núcleo ideológico, acionado pontualmente em torno de disputas que lhe interessavam diretamente. Ao mesmo tempo, se aproximou da direita fisiológica (vulgo “centrão”), tentando aumentar a sua influência no Congresso Nacional, e buscou ampliar suas relações com o STF.
A aproximação com o STF teve com consequência decisão do ministro Gilmar Mendes, que concedeu prisão domiciliar a Queiroz e, posteriormente, ao acordo selado com direito a foto e abraços de Bolsonaro e Dias Toffoli, que abrira os inquéritos, para a indicação de Kássio Nunes Marques para a vaga de Celso de Mello.
A articulação do governo com o chamado “centrão” bloqueou a abertura dos processos de impeachment, ampliou a influência do ministro Rogério Marinho, absorveu no ministério Fábio Faria (PSD) e colocou no Turismo Gilson Machado, que teria entrado na pasta, segundo seu antecessor Marcelo Álvaro Antônio, em negociação para a eleição para a presidência da Câmara dos Deputados.
A manobra do governo, que contou com a nomeação em outros cargos e liberação de emendas, deu resultados com a eleição para a presidência de Arthur Lira (PP-AL) na Câmara dos Deputados e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) no Senado. Ao mesmo tempo, foi tragado o campo de direita liberal no Congresso, que tinha como expoente Rodrigo Maia e tentava construir uma candidatura para 2022.
Por fim, o distanciamento de Bolsonaro com o núcleo ideológico ficou patente no caso do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), que gravou vídeo com ameaças aos ministros do STF e exaltando o AI-5. Depois de uma posição unânime do STF pela prisão do parlamentar e a decisão de referendá-la por ampla maioria da Câmara dos Deputados, Bolsonaro permaneceu em silêncio, o que sinaliza o deslocamento das “guerras culturais” da extrema-direita.
Assim que iniciaram as atividades legislativas, foi aprovado o projeto de lei que concede autonomia ao Banco Central, atendendo os interesses do capital financeiro para blindar a política monetária e cambial. Logo depois de uma reunião do presidente de República com os novos presidentes da Câmara e do Senado, foi lançada uma carta com projetos prioritários da agenda neoliberal para 2021.
A reforma ministerial em curso, prevista desde o começo do ano, faz parte desse processo de mudanças no governo, com o elemento extraordinário da troca no Ministério da Defesa e o desdobramento da saída dos comandantes do Exército, da Aeronáutica e da Marinha.
O núcleo ideológico perdeu espaço, com a demissão de Eduardo Pazuello da Saúde (embora seja um general, foi o maior estandarte do negacionismo sanitário) e Ernesto Araújo das Relações Exteriores, ambos a pedido do centrão, que alegou que a permanência dos ministros prejudicavam a gestão da pandemia. Restou a ministra Damares Regina Alves, que trabalha uma pauta conservadora, mas com apelo popular, e faz a interlocução com as igrejas evangélicas que têm segurado o apoio a Bolsonaro nas últimas pesquisas de opinião.
O centrão ganha maior espaço na gestão e operacionalização da relação com o Congresso Nacional, com a nomeação de Flavia Arruda (PL-DF) para a secretaria de governo e com o deslocamento do general da reserva Luiz Eduardo Ramos para a Casa Civil. Até então, Ramos atuava no Congresso na negociação com os parlamentares e Arruda presidiu a comissão mista do Orçamento, que definiu os projetos e emendas a serem liberadas no ano.
A nomeação do delegado da Polícia Federal Anderson Torres, atual secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, para o Ministério da Justiça aponta que Bolsonaro quer aumentar o controle e endurecer as diretrizes sobre áreas estratégicas. Ele é de confiança da família e amigo de Flávio. Ficará sob seu comando a Secretaria Nacional de Segurança Pública, que faz interlocução com a Polícia Militar em todos os estados. Com a volta de André Mendonça para a Advocacia-Geral da União, ganha maior comando na defesa jurídica do governo.
A demissão do general da reserva do Exército Fernando Azevedo e Silva do Ministério da Defesa e a troca por Walter Braga Netto, que estava na Casa Civil, teve como decorrência a saída dos comandantes do Exército, da Aeronáutica e da Marinha. Azevedo e Silva é um general que ascendeu à política antes da chegada de Jair Bolsonaro à presidência. Já atuou na assessoria parlamentar do Exército no Congresso, foi assessor do gabinete do presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, e chegou ao Executivo no Ministério da Defesa indicado por Eduardo Villas-Boas. Ou seja, tem conexões, influência e menor dependência de Bolsonaro.
A indicação do general Braga Neto para a Defesa, assim como as mudanças na Justiça e na AGU, sinaliza que Bolsonaro quer maior controle sobre as Forças Armadas, colocando em postos chaves militares que se subordinem a seu comando. Para isso, precisava afastar o general Edson Leal Pujol do posto de Comandante do Exército Brasileiro.
Embora os movimentos de Bolsonaro pareçam contraditórios, são complementares na medida em que alimenta o conflito entre instituições, como o STF e o Congresso, com as Forças Armadas, atuando como fiador de um regime político instável, com instituições enfraquecidas e diante de uma crise social crescente e do descontrole da pandemia de coronavírus. Ao avançar ou recuar, estará no centro do embate político.
Por um lado, fortalece a articulação política no Congresso Nacional, consolidando sua influência e construindo uma base política para a eleição presidencial de 2022, responsabilizando os parlamentares na área de gestão do governo. Nesse cenário, projeta que vive o pior dos momentos e terá que atravessar o deserto da pandemia e da crise social, mas poderá se recuperar no próximo ano, mantendo o projeto neoliberal e a polarização com a esquerda para reagrupar a direita e disputar a eleição. Assim, acende uma vela para a política.
Por outro lado, como impôs sacrifícios ao núcleo ideológico, compensa endurecendo a condução da Defesa e da Justiça. Conduzirá pessoalmente e consolidará seu comando sobre aparatos de poder de Estado. Ou seja, prepara-se para um cenário de agudização da crise, com convulsão social pelo empobrecimento da população e um eventual estouro de mobilizações de massa, assim como amedronta os setores do capital e seus porta-vozes que elevam as críticas ao governo. Dessa forma, acende outra vela para a guerra.
*Igor Felippe Santos é jornalista.