Escultura em homenagem aos povos indígenas, conhecido como o monumento aos Muipurais, em Brejo. Indígenas Anapuru Muypurá denunciaram a recusa do cartório de Brejo (MA) em permitir a inclusão do sobrenome étnico no registro civil, mesmo com resoluções nacionais que garantem esse direito. Eles afirmam enfrentar entraves reiterados, envolvendo o cartório da cidade, a Justiça local e a Funai, numa prática que classificam como racismo institucional.
A denúncia foi detalhada pelo educador popular e liderança indígena Lucca Anapuru, ao lado de Míia Florência, uma das mulheres que tiveram o direito negado, durante entrevista concedida ao programa Dedo de Prosa, da Agência Tambor.
[Veja a entrevista na íntegra ao final desta matéria.]
O povo Anapuru Muypurá vive na região do Baixo Parnaíba, no leste maranhense, com presença reconhecida em municípios como Brejo, Chapadinha, São Bernardo e Santa Quitéria. Desde 2019, as famílias iniciaram um processo de retomada do nome étnico nos documentos oficiais — um marco simbólico e político para resgatar a memória do povo após mais de um século de apagamentos. “É um direito à identidade, à memória e ao ser. Estamos e sempre estivemos aqui”, afirmou Lucca.
Apesar de essa inclusão ser garantida pela Resolução Conjunta nº 3/2012, atualizada em 2024 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que orienta cartórios a registrar o nome do povo como sobrenome mediante simples autodeclaração e declaração de pertencimento assinada por lideranças, a comunidade relata repetidas negativas em Brejo. Segundo Lucca, a situação se agravou nos últimos meses. “Em Brejo, esse direito não está sendo apenas dificultado. Ele está sendo negado”, denunciou.
Um dos casos mais graves é o de Míia Florência, que tentou registrar o sobrenome indígena para si e para a filha, mas enfrentou sucessivas recusas. Ela relatou ter sido encaminhada diversas vezes entre o cartório, promotoria e juiz da comarca, sem que o processo avançasse. “Eles perguntaram por que eu queria o sobrenome indígena, se eu realmente tinha parentes indígenas e até se isso prejudicaria heranças. Fiquei meses indo e voltando sem resposta”, contou.
A liderança também critica a posição do juiz da comarca, que teria fundamentado a negativa em uma manifestação da Funai. No parecer, o órgão federal afirma que o povo Anapuru Muypurá não possui procedimento administrativo aberto para reconhecimento e que seriam necessários estudos antropológicos e linguísticos para validar a identidade. Para Lucca, a justificativa é abusiva e reforça um modelo ultrapassado. “Não é a Funai que define quem é ou não é indígena. Essa é uma prerrogativa dos povos, pela autodeterminação reconhecida internacionalmente”, destacou.
O movimento local lembra que o próprio município de Brejo já reconhece oficialmente o povo Anapuru Muypurá. Em setembro deste ano, a Câmara aprovou e a prefeita sancionou a Lei Municipal nº 886/2025, que reconhece a presença histórica da comunidade e institui o Dia Municipal do Povo Anapuru Muypurá. “Como pode o poder público reconhecer o povo e o cartório negar sua existência?”, questiona Lucca.
Para Míia, a negativa é também uma tentativa de silenciar a história de sua família. “Onde eu chego, as pessoas dizem que eu pareço indígena. Eu respondo: ‘Eu sou’. Quero o sobrenome para mim e para minha filha, para honrar meus antepassados e para que ela cresça com orgulho da origem dela”, afirmou emocionada. Ela diz que não pretende desistir. “É uma luta por nós e pelos que virão”, completou.
O caso se soma a relatos de indígenas do Piauí enfrentando obstáculos semelhantes, reforçando um cenário de apagamento que, segundo pesquisadores e entidades de direitos humanos, ainda persiste no Nordeste. Para o povo Anapuru Muypurá, a recusa do cartório, o parecer judicial e a devolutiva da Funai configuram conjunto de práticas que invisibilizam identidades indígenas e violam direitos assegurados em lei.
A Agência Tambor informou que entrou em contato com o cartório de Brejo, o juiz da comarca e a Funai para solicitar esclarecimentos. As manifestações serão incluídas na atualização desta matéria assim que forem enviadas. A entrevista completa com Lucca e Míia estará disponível no link ao fim do texto.
O outro lado
A Agência Tambor entrou em contato com 2º Ofício de Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabelionato de Notas em Brajo sobre as denúncias. Até o momento, o órgão não se manifestou. Assim que nos enviarem um posicionamento, a matéria será atualizada.
Veja a entrevista do educador popular e liderança indígena Lucca Anapuru e da índigena de Anapuru Muypurá Míia Florência no programa Dedo de Prosa.