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A identificação de Tenório Jr.: um alerta à defesa da democracia

Quase cinquenta anos após seu desaparecimento, os restos mortais do pianista carioca Francisco Tenório Cerqueira Júnior, o Tenório Jr., foram oficialmente identificados na Argentina. O músico, que desapareceu em março de 1976 em Buenos Aires, tornou-se símbolo das vítimas do terrorismo de Estado durante a ditadura militar argentina.

Diante dos recentes e alarmantes ataques à democracia no Brasil, como a tentativa de golpe e a crescente polarização política, a identificação dos restos mortais de Tenório Jr. ganha uma relevância ainda maior. A confirmação de sua morte, quase 50 anos depois, não é apenas um resgate histórico; é um lembrete urgente de que as sementes do autoritarismo e da violência de Estado, que ceifaram a vida do pianista, ainda representam uma ameaça real à sociedade.

Sendo, assim, a confirmação reacende debates sobre memória, justiça e os impactos das ditaduras latino-americanas na cultura. Em entrevista ao programa Dedo de Prosa, da Agência Tambor, os pesquisadores Antônio Carlos Araújo e Renan Branco Ruiz analisaram o legado do artista e refletiram sobre o papel da música instrumental como forma de resistência.

[Veja entrevista na íntegra ao final desta matéria.]

Tenório Jr., autor do álbum Embalo (1964), é considerado um dos expoentes do samba-jazz brasileiro. Sua carreira foi interrompida de forma abrupta durante uma turnê com Vinicius de Moraes e Toquinho. Na noite de 18 de março de 1976, saiu do hotel onde estava hospedado para comprar cigarros e nunca mais voltou.

Segundo documentos revelados posteriormente, o músico foi detido por militares argentinos, confundido com um militante de esquerda, e executado. “O caso de Tenório mostra que a ditadura não perseguia apenas agentes políticos declarados. A violência recaía sobre qualquer um que fosse considerado suspeito, mesmo que apenas por sua aparência”, destacou Renan Ruiz.

A confirmação da identidade do corpo só foi possível graças ao trabalho da Equipe Argentina de Antropologia Forense, que cruzou impressões digitais coletadas em 1976 com registros oficiais no Brasil. Para a família, o anúncio significou o fim de uma longa espera, mas também trouxe novas perguntas sobre os detalhes de sua morte.

Para o historiador Antônio Carlos Araújo, que pesquisa o jazz no Maranhão, o caso extrapola a história individual do pianista. “O assassinato de Tenório Jr. é um lembrete de que a arte e a cultura são sempre alvos preferenciais dos regimes autoritários. Até hoje vemos tentativas de silenciar manifestações artísticas que incomodam”, afirmou.

Os pesquisadores ressaltam que a memória de Tenório Jr. ficou durante décadas restrita a círculos acadêmicos e musicais, sem alcançar o reconhecimento público que teve, por exemplo, o exílio de nomes como Caetano Veloso ou Gilberto Gil. “Enquanto a canção ganhou centralidade na historiografia, a música instrumental e seus artistas foram tratados como personagens secundários”, disse Ruiz.

Essa lacuna motivou os estudiosos a escrever artigos e apresentar trabalhos em congressos internacionais sobre o tema. “É fundamental recuperar a trajetória de músicos como Tenório, porque suas histórias ajudam a compreender os efeitos da ditadura para além das grandes figuras consagradas”, observou Araújo.

O caso também evidencia o caráter transnacional da repressão. Inserido no contexto da Operação Condor, o desaparecimento de Tenório Jr. liga-se a uma rede de colaboração entre ditaduras do Cone Sul, que compartilhavam informações e métodos de perseguição política.

Para Ruiz, a identificação do corpo em pleno 2025 conecta passado e presente. “Não é coincidência que essa notícia chegue em um momento em que o Brasil discute a responsabilização de militares por tentativas de golpe. A história insiste em mostrar os perigos da anistia e do esquecimento”, afirmou.

Araújo completa: “O caso Tenório mostra que mesmo quem não se via como militante político pôde ser vítima da violência de Estado. Ditaduras não toleram diversidade, seja de ideias, de sons ou de corpos. Por isso, lembrar sua história é um ato de resistência”.

A pesquisa dos dois historiadores segue em andamento e se soma à luta da família do pianista por justiça e memória. Como lembram, a trajetória de Tenório Jr. não é apenas um episódio trágico da música brasileira, mas parte de um capítulo maior sobre autoritarismo, arte e democracia na América Latina.

Assista a entrevistados dos pesquisadores Antônio Carlos Araújo e Renan Branco Ruizna na íntegra, no programa Dedo de Prosa.

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