
Por Igor de Sousa – MECILA
Nas últimas semanas, estive em Dakar, Senegal, compondo a Delegação Brasileira de Antropólogos Negros no Congresso Internacional de Antropologia e Experiência Negra. A participação nesse encontro consistiu em um momento de satisfação e entusiasmo, ao possibilitar trocas significativas com professoras, professores e colegas que compartilham a luta pela construção de epistemologias negras. No entanto, entre tantos episódios marcantes, uma vivência em especial me atravessou de forma singular: a visita à Ilha de Gorée, espaço emblemático da memória da escravidão e da diáspora africana.
Durante a visita, ao me debruçar sobre o mar, sobre a rota atlântica que nos trouxe até aqui, deparei-me com o professor Osmundo Pinho, visivelmente emocionado, com os olhos marejados. Naquele instante, hesitei sobre como proceder e optei por deixá-lo a sós. Minutos depois, reencontrei-o no hall da antiga casa de comércio escravagista. Nesse momento, estabelecemos uma breve conversa sobre a extensão das nossas ações frente ao genocídio antinegro. Os mundo, inquieto, questionava se aquilo que ele e nós temos feito seria suficiente para enfrentar a brutalidade cotidiana que acomete corpos e comunidades negras. Concordamos que, embora muitos de nós estejamos profundamente engajados, nossos esforços não têm sido suficientes para desmantelar a lógica genocida que se reproduz diariamente.
Esse episódio marca o dilema fundamental que me move: a urgência em refletir sobre os limites das nossas respostas diante do terror racial atualizado. Interessa-me compreender como o regime de plantation e as estruturas coloniais não apenas se perpetuam, mas se reconfiguram no presente, ancorando-se nas promessas de desenvolvimento e progresso. A experiência cotidiana de pessoas e comunidades negras é atravessada por múltiplas violências que se manifestam em mortes evitáveis, hiperexploração, desemprego e doenças que, em grande medida, poderiam ser prevenidas. Mesmo as respostas institucionais que nos são direcionadas frequentemente falham em alcançar de modo efetivo os nossos mundos.
Observa-se, por outro lado, a contínua expansão do mundo branco – uma expansão que se realiza através da guerra, da apropriação territorial, da imposição epistêmica e da naturalização constante de conceitos e soluções que, ao ganharem centralidade nas análises contemporâneas, reafirmam a supremacia de um modelo civilizatório.
No contexto brasileiro, e particularmente no Maranhão, essa lógica colonial se materializa de forma contundente. Ao longo de minha trajetória, tenho me dedicado à pesquisa junto a comunidades negras rurais, especialmente quilombolas e grupos de mulheres negras quebradeiras de coco babaçu. O que se observa, nesses territórios, é a atualização das formas de violência sob a égide do desenvolvimento. Projetos vinculados ao agronegócio e à mineração, legitimados pelo discurso da geração de divisas, infraestrutura e bem-estar social, têm sistematicamente produzido deslocamentos forçados, assassinatos de lideranças e a desarticulação de modos de vida.
Não se trata do desenvolvimento enquanto promessa ou pelo que não realiza, mas sobretudo nos efeitos concretos que produz. No Maranhão, o desenvolvimento tem operado como dispositivo de aprofundamento da pobreza e de substituição demográfica. Sob o argumento da modernização agrícola, observa-se desde a década de 1970 um processo prolongado de branqueamento, com a intensa chegada de produtores rurais oriundos da região Sul do Brasil. Essa ocupação visa domar e controlar espaços que são historicamente negros, impondo-lhes um modelo de vida que lhes expropria e silencia (SOUSA, 2022).
É fundamental revisitar Frantz Fanon (1968) para compreender esse processo. Fanon nos ensina que a zona do não-ser só pode existir em relação com a zona do ser, onde falta de tudo, é imprescindível para o reino da abundância e gozo. No caso maranhense, a expansão do agronegócio e a lógica desenvolvimentista operam como dispositivos que tentam consolidar um espaço cada vez mais branco, em detrimento das geografias negras. Ainda que o agronegócio seja amplamente exaltado como motor da balança comercial brasileira, seus efeitos mais profundos incluem a violência sistemática contra povos e comunidades tradicionais, a elevação do custo de vida, o encarecimento de itens básicos e a degradação ambiental.
Porém, apesar da brutalidade dos ataques, comunidades negras têm reiteradamente mobilizado estratégias de reinvenção da vida. Como propõe Katherine McKittrick (2011), é possível pensar em geografias negras que escapam das lógicas de captura e controle. Abdias Nascimento (2002; 2016) e Beatriz Nascimento (1979; 2018) também nos oferecem caminhos para compreender a centralidade da memória, da ancestralidade e da criação de espaços de autonomia como formas de resistência. Autores como Jaime Amparo Alves (2023) e João Vargas (2023), têm enfatizado a dimensão fugitiva e criativa da experiência negra, que, frente ao terror e ao capitalismo racial, produz constantemente novas possibilidades de existência.
Se o projeto colonial opera incessantemente para aniquilar, a experiência negra tem se mostrado igualmente insistente na produção de mundos outros. Essa fuga não é um gesto de rendição, mas uma forma radical de elaboração de formas de vida que escapam às normativas raciais impostas pela modernidade e desenvolvimento.
A plantation como fundamento da modernidade: violência, atualizações e resistências negras
A plantation, enquanto sistema não pode ser compreendida apenas como uma forma histórica de exploração agrícola. Ela constitui, na verdade, a base do capitalismo industrial e das modernas formas de gestão do trabalho. A lógica da plantation estrutura as dinâmicas de exploração que dão alicerce as fábricas, as indústrias e as múltiplas dimensões da sociedade contemporânea.
É fundamental reconhecer que a modernidade, frequentemente associada ao progresso e à razão, se inaugura por meio da violência da plantation. É no contexto das plantations no chamado “Novo Mundo” que se consolidam as práticas mais brutais e sistemáticas de desumanização, tornando-se alicerces de um projeto civilizatório que permanece vigente. A plantation, portanto, não é um episódio do passado colonial, mas um dispositivo que se atualiza e se reconfigura continuamente.
Frente a tal situação, as comunidades negras não apenas resistem, mas reinventam mundos possíveis. Desde os tempos da escravidão, essas comunidades vêm elaborando estratégias de autonomia e sobrevivência que se materializam em práticas como o cultivo de roças próprias (plots), sobre a reorganização do tempo e do espaço (WYNTER, 1971), as alianças com povos indígenas e outras comunidades tradicionais, bem como a apropriação crítica de saberes ocidentais. Esses movimentos configuram um esforço constante de reinvenção das chamadas geografias negras, isto é, formas próprias de organização territorial, comunitária e existencial que desafiam as lógicas hegemônicas de controle.
Norman Ajari (2019) nos convida a refletir sobre a centralidade da dignidade nesses processos. Se, de um lado, a morte opera como uma ameaça constante — um “leão que assombra” —, de outro, tantas vidas negras são condenadas a existências tão precarizadas que se tornam quase inviáveis. Por isso, a luta das comunidades negras não se limita à sobrevivência, mas é também uma luta por condições concretas de vida vivível, por espacialidades onde seja possível experimentar a dignidade e o pertencimento.
O desafio contemporâneo está justamente em reconhecer que as formas coloniais da plantation se expandiram, infiltrando-se em instituições, sistemas urbanos, políticas públicas e dinâmicas sociais aparentemente desconectadas de suas origens coloniais. Como afirma Saidiya Hartman (2025), a escravidão persiste em sua “vida póstuma”, perpetuando violências que continuam a moldar o presente de forma profunda.
Assim, compreender a plantation como um dispositivo central da modernidade, forma de gestão da vida e morte, do saber-fazer, nos exige um novo nível de comprometimento político, ético e teórico com as lutas das comunidades negras. Essas lutas não dizem respeito apenas ao passado, mas à urgência de construir condições para uma existência plena no presente. Elas nos convocam a elaborar, coletivamente, outros futuros possíveis.
Referências
ALVES, Jaime Amparo; VARGAS, João da Costa. Polis Amefricana: para uma desconstrução da ‘América Latina’ e suas geografias sociais antinegras. Latitude, Maceió, v.17, n. 1, p.57-82, 2023.
AJARI, Norman. La Dignité ou la mort: éthique et politique de la race. Paris: Édi-tions La Découverte, 2019.
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968.
HARTMAN, Saidya. Cenas da sujeição: terror, escravidão e criação de si na América do século 19. São Paulo: Editora Fósforo, 2025.
MCKITTRICK, K. On plantations, prisons, and a black sense of place. Social & Cultural
Geography, v. 12, n. 8, p. 947–963, 2011.
NASCIMENTO, Abdias do. O quilombismo. Brasília: Fundação Cultural Palmares; Rio de Janeiro: OR editor produtor, 2002.
NASCIMENTO, Abdias do. O Genocídio do negro brasileiro: processo de um ra-cismo mascarado. 3ª. ed. São Paulo: Perspectiva, 2016.
NASCIMENTO, Maria Beatriz. O quilombo de Jabaquara. Revista de Cultura Vozes, São Paulo, v. 73, nº. 3, 1979.
NASCIMENTO, Maria Beatriz. Beatriz Nascimento, quilombola e intelectual: possibilidades nos dias de destruição. Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018.
SOUSA, Igor Thiago Silva de. As rosas negras: quebradeiras de coco babaçu, raça e território no Maranhão contemporâneo. Tese (Doutorado) — Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Porto Alegre, BR-RS, 2022.
WYNTER, Sylvia. Novel and history, plot and plantation. Savacou, v. 5, n. 1, p. 95-102, 1971.