Por: Joaquim Cantanhêde
Mãe, assim é chamada a palmeira que pare o babaçu por mulheres extrativistas, trabalhadoras do campo, cidadãs a quem as lidas diárias não as impedem de lutar por dignidade, ocupando espaços para além de um território berço de suas existências e modos de vida. Pela mata verde caminham coletando o coco, às vezes em silêncio, em outras ocasiões cantarolando. “Ei não derruba essas palmeiras”, suplicam, mas o drone pulverizador só faz o que patrão manda.
Em comunidades rurais do município de Lago do Junco, Maranhão, a 330 km da capital São Luís, há uma “chuva” que cai sobre as florestas de babaçu, mesmo em meses de estiagem. Não é aquela da prece feita à sombra das capelas, tão pouco é digna de um “graças a Deus”. Extrativistas dos povoados Santa Luzia, São Manoel e Ludovico, entrevistadas pelo jornal O Pedreirense, denunciam que o derrame de agrotóxicos, por fazendeiros, ameaça tornar o babaçu o novo fruto proibido. Temem por sua economia coletiva fundamentada em uma outra forma de pensar o território e as relações que ocorrem nele.
“Esse senhor de drone, essas máquinas que estão jogando veneno nas terras, acabam com tudo. Nosso babaçu perde a utilidade. Depois que a gente lutou, mostrando no mundo inteiro que a palmeira é uma verdadeira mãe, cresceu a cobiça, aquele ódio, a ganância das grandes empresas. Criaram esse tipo de coisa que mata tudo”, lamenta Diocina Lopes dos Reis, moradora da comunidade Ludovico, que reconhece na pindova amarelando a presença do agente químico.
Morando na comunidade São Manoel, dona Ivete Ramos dos Santos, assim como fez Dió, denuncia que a contaminação atinge também açudes e igarapés. “Onde colocam o veneno prejudicam as águas, no lugar em que a gente pesca, tirando a sobrevivência dos igarapés. Os peixes são envenenados, a gente não pode comer e muitos morrem com o uso de agrotóxicos que tem hoje, descontrolado, em nossa região”, desabafa a extrativista presidente da AMTR.
A luta contra aquilo que lhes ameaça a existência e permanência vem de longas datas, para ser mais preciso, década de 90. No contexto de resistência contra o latifúndio e a degradação ambiental, nasceu a Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais de Lago do Junco e Lago dos Rodrigues (AMTR). Foram elas as mais impactadas com as violações de direitos humanos, perceptíveis no êxodo rural, na pobreza extrema e na insegurança alimentar. Com atuação na microrregião do Médio Mearim, conta com 53 sócias, mantendo parcerias, a título de exemplo, com Associação em Áreas de Assentamento no Estado do Maranhão (Assema) e Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB).
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Das conquistas desde então, destaca-se a Lei do Babaçu Livre. Ela garante que as comunidades extrativistas tenham acesso aos babaçuais e proíbe a derrubada das palmeiras (com exceções), bem como o corte do cacho por inteiro por inviabilizar sua reprodução e compromete o uso de forma sustentável.
“Quando falo que a palmeira é uma verdadeira mãe, é que de quatro a cinco cachos que bota, alimenta para mais de 50 mães. Cada uma que passa pega um babaçu”, argumenta dona Dió.
Do coco nada se perde. As amêndoas (3 a 5 por fruto) rendem o óleo, cuja comercialização, em grande parte, acha como destino a produção de cosméticos. Já da farinha do mesocarpo se faz do mingau ao biscoito. Até para a casca encontra-se serventia, seja como carvão ou peça artesanal. Nem a palha fica ao relento.
Babaçu é também economia, mas aqui ela vem acompanhada de outro termo: solidária. Criada em 1991, a Cooperativa dos Pequenos Produtores Agroextrativistas de Lago do Junco (COPPALJ) tem hoje 245 cooperativistas. Se destaca na produção e beneficiamento dos derivados do babaçu. A comercialização do óleo orgânico bruto/refinado e torta de babaçu, tanto para o mercado nacional quanto internacional. L’Oréal, Beraca, Gustav Heess, Zoom e Oat Cosmetics são algumas das marcas que integram a lista de compradores.
“Cada exportação que é feito pra Natura é 800 botijões desse, que chega em torno de 16 toneladas”, explica Gilmar Alves da Silva, filho de cooperativistas, trabalhador com carteira assinada, levando de um cômodo a outro botijões para a armazenagem do óleo.
Essa economia, que deixa a palmeira em pé é ameaçada pelo uso de agrotóxicos por fazendeiros da região. Conceição de Maria, representante legal da COPPALJ, denuncia que Certificação Orgânica, obtida com luta, articulação e adequação, pode ser perdida. Sem intervenção das autoridades os impactos individuais e coletivos podem ser desastrosos. Para a COPPALJ será um imenso retrocesso, tento como consequência, inclusive, restrições do mercado.
“Para que um produto seja rotulado e vendido no Brasil como ‘orgânico’ é obrigatório que a unidade de produção passe por um dos 3 mecanismos de garantia da qualidade orgânica – certificação por auditoria, certificação participativa ou estar vinculada à uma organização de controle social. Esta obrigatoriedade está baseada nos riscos à segurança do consumidor ou ao meio ambiente”, destaca O Governo Federal sobre a certificação de produtos orgânicos, outrora estabelecida pela Lei 10.831/2003 e regulamentada pelo Decreto 6.323/2007.
Agora, as mulheres extrativistas, que em um passado não muito distante lutaram contra ameaças vindas a cavalo, travam uma nova peleja. Cada palmeira importa.
“Queremos aqui fazer um apelo às autoridades de Lago do Junco, para que façam restrições as aplicações e agrotóxicos, preservando a saúde das famílias e a sobrevivência das pessoas que dependem da atividade do extrativismo do coco babaçu e dos produtos da sociobiodiversidade”, pontua Conceição de Maria, fazendo referência a um Projeto de Lei (PL) que “institui e define como Zona Livre de Agrotóxicos a Produção Agrícola, Pecuária, Extrativista e as Práticas de Manejo dos Recursos Naturais no Município de Lago do Junco”.
Não tão rápida quanto os drones que espalham a morte é a comissão imbuída de analisar o projeto e pautá-lo na Câmara de Vereadores de Lago do Junco. Durante sessão ocorrida na sexta-feira, 28 de junho, o jornal o Pedreirense chegou a tempo de entrevistar a vereadora e presidente da comissão, Elidevan Ferreira de Sousa (PT), Tiago Fialho Lopes (PcdoB) e José Leopoldo Pereira (PT) – conhecido como Zeca, ele não é membro da comissão. Nenhum deles visitou as comunidades extrativistas que denunciam as ameaças aos babaçuais.
“Como relator, fiquei de ir lá, no povoado. Tem que ser comprovado, mas por motivo de saúde não tive condições de ir ainda lá”, disse Tiago, segundos antes de afirmar, diante de seus colegas de comissão: “A COPPALJ, hoje, tá até na eminência de ser fechada se a gente não averiguar realmente esses fatos”. Sem nada para relatar, o relator afirmou, minutos depois do Legislativo entrar de “férias”, que diante da situação a câmara não irá se eximir.
Mais urgente, argumentou o vereador Zeca, é a votação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que pode ter o luxo de uma sessão extraordinária.
“Após o recesso, se essa comissão não se posicionar diante da votação do projeto é trocar de comissão e ver o que vai acontecer”, disse, com naturalidade, a vereadora Elidevan, cogitando que, na peleja entre os fazendeiros e as trabalhadoras rurais, a comissão presidida poderá permanecer inerte.
As idas e vindas, à frente da coordenação do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), não fazem com que Maria Alaídes Alves de Sousa esqueça do papel do legislativo municipal neste conflito. Ao parlamento, espaço que ocupou de 2000 a 2008, deixou um recado: “Sejam solidários, sejam pessoas comprometidas, assumam o papel de legislador”.
Tão logo fez suas preces à casa do povo, Maria não profetizou a desistência. Escolheu a coragem que compartilha com as companheiras de movimentos, percebida no semblante e na ponta da língua. Quem avisa amigo é.
“Nós vamos continuar na trincheira, lutando até que a gente consiga”, diz ela, entendendo que o PL, se aprovado, trará segurança social, econômica, ambiental e nutricional para as populações extrativistas.
Aos municípios, Ministério Público Federal (MPF) e Ministério Público do Estado do Maranhão (MA) recomendaram, já considerando a tramitação de PL, a exemplo de Lago do Junco, que “sejam adotadas todas as medidas necessárias à célere aprovação do projeto de lei, levando em consideração os prejuízos causados às pessoas e ao meio ambiente, que precisam ser cessados com a maior rapidez possível”. O documento, de 06 de junho, estabelece o prazo de 45 dias para que as casas legislativas informem se a recomendação será acatada. Se a reposta for não, as justificativas deverão ser apresentadas.
O que ocorre em Lago do Junco não é um caso isolado, aponta o mapa “Territórios Vitimados Diretamente por Agrotóxicos no Maranhão – janeiro a junho de 2024”, levantamento cartográfico desenvolvido pela Rede de Agroecologia do Maranhão (RAMA), Federação dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do Maranhão (FETAEMA), em colaboração com o Laboratório de Extensão, Pesquisa e Ensino de Geografia da Universidade Federal do Maranhão (LEPENG).
Ouvida pelo OP, Ariana Gomes, secretária da RAMA, aponta como fator determinante a implantação do agronegócio no Maranhão, especialmente com a expansão agrícola do Matopiba (Tocantins, Maranhão, Piauí e Bahia) sobre o cerrado. É nesse contexto que, segundo ela, em 2023 surgiram inúmeras denúncias de comunidades contaminadas, além de danos à produção. De articulação em articulação surge então a campanha “Chega de agrotóxicos: queremos territórios livres de veneno”.
“Dar visibilidade sobre essa situação de violência, de enfretamento e comunidades vitimadas por agrotóxicos e mobilizar a sociedade civil, com assinaturas, para se dar entrada em um Projeto de Lei, de iniciativa popular, a nível estadual, que proíba a pulverização aérea em todo o estado”, argumenta Ariana, sobre mobilização que também envolve a participação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Segundo o levantamento, “166 comunidades tradicionais, quilombolas e assentamentos rurais em 25 municípios de nosso estado estão sofrendo graves consequências devido à pulverização de agrotóxicos”, que se dá pelo uso de aviões e drones.
“Isso é uma amostra da realidade do Maranhão. Nem todas as comunidades conseguem denunciar, seja por medo ou qualquer outro fator interno”, destaca Ariana, que sublinha serem importantes iniciativas municipais de enfrentamento.
Sete, de 17 Projetos de Lei postos em tramitação, já foram aprovados no Maranhão. Foi o que ocorreu em Buriti. Por 7 a 4 o Legislativo aprovou PL proibindo a pulverização aérea de agrotóxicos. O município, em 2021, ficou nacionalmente conhecido a partir dos casos de violência química contra as comunidades de Carranca e Araçá.
“É um trabalho das quebradeiras de coco, do extrativismo, mas que não é apenas a renda, é uma representação cultural, expressão social, que trabalha diretamente com a manutenção da vida dessas pessoas. Então identificar tudo isso representa dizer não a flexibilização das leia ambientais e dizer que a chuva que queremos não é de veneno”, ratifica o jovem Jessé Lima da Silva, morador do povoado São Manoel e membro da Associação de Jovens Rurais de Lago do Junco e Lago dos Rodrigues (AJR).
Revisão: Mayrla Frazão
Fonte: opedreirense