Por Italo Silva
Se você acompanha o ETC, já deve ter percebido que comumente discutimos sonho, futuro, alteridade e comunidade. Nosso objetivo não é esgotar as temáticas, mas entrelaçá-las, revisitá-las, dando sentido ao nosso fazer enquanto grupo de pesquisa.
De uns tempos pra cá, estamos ampliando nosso processo de escuta. Buscando conhecer organizações, instituições e pessoas, de diversas áreas de atuação, que estão fazendo diferença na sociedade através da arte, cultura, educação, empreendedorismo, tecnologia, sozinhas ou em conjunto, com ou sem recurso.
Caso você seja de São Luís, é muito provável que já tenha ouvido falar no bairro da Cidade Operária. E se não for, o texto “Entre as ‘Unidades’ e as camadas do território da Cidade Operária’’, escrito por Elivânia Estrela, apresenta um breve panorama histórico da criação e desenvolvimento dessa região.
Moldada a partir de conflitos, opressões, resistência e lutas por direitos à moradia, saneamento básico, transportes, educação, entre uma série de outras demandas, a macrorregião da Cidade Operária é tida atualmente como um território diverso e criativo, potência econômica e cultural, espaço propício para o empreendedorismo, inovação, mas que ainda convive com diversos problemas estruturais deixado pelo passado.
É neste cenário complexo e dicotômico que surge o Coletivo Menina Cidadã, o qual vamos conhecer ao longo deste conteúdo. Por isso, convidamos a menina líder, Bianka Melo, acadêmica de Ciências Sociais, mobilizadora social e assessora de projetos, para nos apresentar as atividades desenvolvidas, quais os impactos dentro da comunidade, se há articulações com outras organizações a nível estadual e nacional, e quais os planos para o futuro do coletivo.
ITALO SILVA: Ficamos muito felizes com sua disponibilidade para colaborar com o nosso projeto e esperamos que nossa conversa possa ampliar as perspectivas para o empreendedorismo em nossa cidade. Para começarmos gostaria que você se apresentasse, quem é você, quais os caminhos percorreu até chegar aqui e como sua história se conecta com a Coletivo Menina Cidadã?
BIANKA MELO: Eu sou a Bianka Melo, tenho 24 anos, sou acadêmica de Ciências Sociais pela Universidade Federal do Maranhão, moradora da macrorregião da Cidade Operária, especificamente do Geniparana, onde muitas pessoas não conhecem, mas a gente existe e resiste. Para falar um pouquinho de como minha história se conecta com o Menina Cidadã, eu preciso contextualizar algumas coisas.
Eu passei de uma menina lá do Ensino Fundamental, que não falava com ninguém, que chorava quando as pessoas falavam comigo, que não gostava que as pessoas olhassem pra mim, tinha um certo tipo de fobia social, uma coisa que até hoje eu não consigo explicar. Para alguém que fala pelos cotovelos hoje em dia. Mas o meu Ensino Fundamental foi marcado por professores, que olharam para aquela menina chorona e disseram assim: ‘’dali vai sair alguma coisa’’. E acreditaram em mim, no meu potencial.
Já no Ensino Médio, eu conheço a Pastoral da Juventude. E foi aí que eu tive o start mesmo para projetos sociais, entendi o que era bem viver das comunidades, políticas públicas, e como eu, enquanto aquela menina que morava na periferia, podia fazer muito mais, o quanto a minha voz podia ressoar.
O primeiro projeto social que eu tive contato foi o Jovem Guardião, que nós éramos voluntários nas unidades de medidas socioeducativas de São Luís. Então, tudo isso me fez ver um outro lado da realidade. Adolescentes, meninas e meninos privados de liberdade, cumprindo medidas socioeducativas. E isso foi me moldando durante muito tempo.
Em 2016, meu caminho acabou se cruzando com a Fundação Justiça e Paz se Abraçarão. Então, eu comecei a ser voluntária nas ações pontuais que a Fundação realizava, sendo animadora, cuidando de criança, entregando cestas básicas.
E eu preciso contar tudo isso, porque isso tudo faz parte da minha história, às vezes, a gente acaba não falando sobre o passado, e não consegue compreender o futuro. E é isso que eu gosto de deixar claro quando a gente está falando de mobilização juvenil, porque a gente não nasce sabendo das coisas, a gente aprende, é uma questão de aprendizado, o percurso, o dia a dia, o contato com as comunidades, o contato com as pessoas, ele nos molda.
E aí chega o momento da pandemia. Em 2020, iria começar um projeto na Escola Maria José Aragão, na Cidade Operária, puxado pelo UNICEF, pela Fundação Justiça e Paz se Abraçarão, e pela Fundação Josué Montello, com adolescentes e jovens. Isso antes da gente ter a iminência de pandemia. Quando a pandemia chega e para tudo, o projeto teve que se reformular.
Foi criado um grupo no WhatsApp, então teve todo um movimento de entender o que era aquele momento que estava sendo vivido. Porque ninguém sabia o que era. Estou falando de março de 2020, onde está todo mundo assustado.
E aí, do grupo do WhatsApp, se criou o Instagram do projeto que se chamava Cidadanear e nesse Instagram começa a ter lives, chamar pessoas para conversar sobre diversos temas, era uma maneira de se distrair naquele momento. E eu já começo a contar isso, porque serve de inspiração para o surgimento do projeto Menina Cidadã. Quando vai chegando mais para o final do ano, a gente está em contato com a gestão de algumas escolas.
E a escola que nos abriu a porta nesse momento foi o Barjonas Lobão, na Cidade Operária, mais conhecido como Caic. E a professora Leila, gestora geral, disse assim, ‘’eu consigo juntar umas meninas para vocês fazerem umas oficinas’’.
A gente ficou muito animada. Passamos quase um ano sem ver ninguém. E aí, juntamos as meninas, começamos a fazer um monte de oficinas e a gente chama de “Elas por Elas’’.
Eram meninas, falando com meninas, se fortalecendo, discutindo sobre liderança, empoderamento, falando em como elas muitas vezes tiveram que assumir papéis dentro de casa que não eram delas, nesse período de pandemia e como que tiveram que se reinventar.
E aí tem uma parte triste também dessa história, é de reconhecer a violência doméstica que está acontecendo dentro das suas próprias casas.
Isso foi uma coisa que ficou muito marcada para mim, no sentido de a gente se encontrar e dizer: “eu reconheci o que estava acontecendo dentro da minha casa, a partir das conversas que a gente teve’’, porque até então era normal para a menina ver a mãe dela sofrendo violência psicológica, violência patrimonial, não chegou a ter violência física, mas todos os outros tipos de violência aconteceram ali.
Então, entender que aquele processo de oficina e de roda de conversa foi importante para reconhecer aquilo que estava acontecendo, foi um marco para a gente. E aí foi quando a Fundação Justiça e Paz se Abraçarão e o UNICEF começaram a pensar num projeto. Inspirados no Elas por Elas, em dezembro de 2020, se bate o martelo, criando assim o Menina Cidadã.
IS: Pensando nas pessoas que não conhecem o projeto, apresenta pra gente o que é o Coletivo Menina Cidadã, como surgiu, quais atividades têm sido realizadas e quantas pessoas estão envolvidas diretamente?
BM: O coletivo começou suas atividades em janeiro de 2021, com um grupo de dez mobilizadores que precisaram pensar em atividades, oficinas e um questionário.
Esse questionário foi aplicado com 200 meninas da macrorregião da Cidade Operária, onde elas respondiam das mais diversas perguntas, sobre violência, pandemia, educação, políticas públicas de um modo geral.
Mas para que esse questionário seria? Não dava para a gente, aquele grupo de dez mobilizadores, ditar o conteúdo que seria abordado no projeto. As meninas queriam saber sobre educação? As meninas queriam saber sobre política pública? Ou elas queriam saber qual era o papel delas na política? Porque aí a gente teve uma oficina, o papel da menina na política, porque tinha uma pergunta no questionário de como elas entendiam a política pública para meninas.
E sabe qual foi o maior número de respostas? Eu só vejo política pública acontecendo no ano de eleição. Quase que 90% das meninas responderam isso. E aí a gente pensou, como é que a gente pode explicar para elas que boa parte das atividades do dia a dia está relacionada com a política.
Com as respostas em mão, fizemos uma oficina online, porque a gente não podia colocar 200 meninas juntas. No entanto, só apareceram 30 meninas.
E aí, a gente constatou uma outra realidade. Nem todo mundo tem acesso à internet. É uma coisa tão óbvia. É tão presente, mas ao mesmo tempo foi um soco no estômago, assim, muito grande, porque elas não têm internet para passar 30 minutos numa reunião no Meet.
Por isso, fizemos uma rodada de oficinas presenciais em vários lugares. A gente , inclusive, saiu da macrorregião. Fomos para São José de Ribamar, para Matinha ali no Maracanã, pro quilombo de Santana, porque a gente entendeu que esses lugares precisavam da nossa presença nesse momento. E esse processo foi muito fortalecedor e ao mesmo tempo muito desafiador, porque víamos na prática o descaso de tudo.
Depois disso, o Ministério Público que já estava acompanhando nossa mobilização, propôs fazer oficinas sobre políticas públicas com as promotoras de justiças. Então, a gente teve quatro rodadas de oficinas com as promotoras.
No último dia, no final da última oficina, a carta demanda do Menina Cidadã estava pronta. E eu falo disso com muito orgulho, com muito entusiasmo, porque isso para mim é o marco do que a gente pode fazer enquanto movimento social, enquanto articulação juvenil. Mostrando que adolescentes e jovens têm poder de fala, de atuação, e o quanto precisamos estar presente em muitos mais espaços.
A carta do menina cidadã é carregada de muita coisa, de muita verdade. Todas as vezes que a gente já fez entrega da carta, falou sobre a carta, leu a carta em espaços, foram vezes fortalecedoras para nós, e desafiadoras para quem estava ouvindo.
A carta fala sobre políticas públicas na visão das meninas, que moram no território da Cidade Operária. Aborda sobre a falta de iluminação pública, de delegacias, de estruturas nas escolas, do descaso com a preservação do patrimônio público, das praças que foram construídas sem consultar as pessoas e que foram sendo deterioradas com o tempo.
Depois da construção da carta demanda as coisas deslancham. As pessoas começaram a enxergar que tinha um grupo desse lado de cada cidade, que estava fazendo muito barulho, que estava de alguma forma incomodando em alguns espaços.
A carta foi apresentada pela primeira vez no Auditório do Ministério Público. Estavam presentes vários tomadores de decisão, secretários de Estado, deputados e deputadas, vereadores.
O Menina Cidadã viveu muitas fases, assim, em pouco tempo. Nós fomos voluntárias na campanha de vacinação, porque eu não sei se vocês lembram, a campanha de vacinação era concentrada em uma área da cidade. Quando resolveram descentralizar isso e trazer a vacinação para dentro da Cidade Olímpica, tinha pouca gente para aplicar vacina para o número de pessoas que tinham sem se vacinar.
Então, nós estávamos lá durante todos os dias de vacinação, o dia inteiro, recebendo as pessoas, anotando ali nas carteiras de vacinação, indicando os lugares. Nós passavamos o dia todo na Escola Padre Bráulio, que era o local onde estava tendo a vacinação.
O coletivo Minha Cidadã, além da cidade de São Luís, alcançou outras áreas. A gente conseguiu multiplicar a estratégia de mobilização, a estratégia de articulação do coletivo em outras cidades do Maranhão.
IS: Qual a relação do coletivo com o território da Cidade Operária?
BM: A Territorialidade é uma coisa muito importante para tudo que a gente faz. Porque a motivação de tudo isso foi ‘’Como que a cidade operária era vista nos jornais?’’. Quando eu falo Cidade Operária, não estou falando sobre o bairro, estou falando da macrorregião. Cidade Olímpica, Geniparana, Jardim América, mais de 20 bairros.
Como é que esse território era visto nos jornais? Como que era estampado? ‘’Morre não sei quantos jovens no final de semana’’. Mas a gente que estava aqui dentro, conseguia perceber o território de uma outra forma.
A gente conseguia enxergar o grupo de artes que estava crescendo, que era o Grupo de Artes Maria Aragão-GAMAR. Ele estava fazendo a diferença na vida dos jovens e adolescentes daqui. Tinham outras instituições fazendo seus trabalhos belíssimos.
E por que isso não era importante para as grandes mídias? O nosso maior sonho era conseguir fazer com que os meninos e as meninas se enxergassem parte desse território. De dizer, eu faço parte disso aqui. Eu sou dessa região. E eu posso dizer isso com muita tranquilidade, com muito orgulho.
É sobre fazer com que a gente se sinta parte. E faça com que outras pessoas despertassem esse senso de que a gente precisa demonstrar o que o território tem de bom, de importante, o que as pessoas do lado de fora, elas precisam enxergar.
Pertencimento, territorialidade, ouvir a comunidade, respeitar quem veio antes. Isso é uma outra coisa muito importante. Respeitar as pessoas que já estavam movimentando a Cidade Operária. Respeitar as pessoas que já tinham atividades dentro do território. Porque a gente não podia chegar invadindo um espaço do outro.
Não é uma questão de que o meu projeto é mais importante do que o outro. Mas o projeto que está começando agora pode somar com o teu, que já está há 20, 30, 40 anos.Então, ter essa perspectiva de que a gente está unido, a gente é muito mais forte do que fazer um trabalho sozinho e isolado.
IS: Nesses processos de mobilização, vocês têm se articulado nacionalmente? Com quais organizações?
BM: Então, falando também sobre essas coisas, de como se deu essas ligações com outros espaços. O projeto Menina Cidadã era um projeto apoiado pelo UNICEF, em parceria com a Fundação Justiça e Paz se Abraçarão. Então, o UNICEF mostrou o projeto para vários outros lugares. A gente saiu nas redes sociais e no site do UNICEF.
Outros espaços começaram a ver o que estava acontecendo aqui. E é aquela questão dos contatos. Um contato vai passando para o outro, uma reportagem, algumas TVs aqui de São Luís, fizeram reportagens conosco e aí o Instagram do próprio coletivo Minha Cidadã foi surgindo nesse meio tempo.
Por exemplo, o IFMA de Buriticupu foi quem contactou a Fundação para dialogar com o Menina Cidadã. Por que? Experiência positiva. O IFMA de lá, na biblioteca, as multas não eram pagas em dinheiro. As multas eram pagas com pacotes de absorventes.
Pensando na questão da dignidade menstrual e da pobreza menstrual, então eles recebiam os pacotes de absorventes e faziam as doações na própria escola e em outros espaços também.
O que o coletivo Minha Cidadã foi fazer em Buriticupu foi só falar sobre a temática para que mais pessoas pudessem conhecer, porque tinha esse processo, mas não entendia que pobreza menstrual era além do absorvente, qual era o papel dos meninos, o que a escola podia fazer, e lá em Buriticupu a gente visitou duas escolas, uma da rede estadual e o próprio IFMA, fazendo oficina.
Alcântara e Bequimão, nós fomos a partir do movimento com os NUCAs no selo UNICEF. Foram duas atividades que a gente fez a partir do próprio UNICEF. Teve um evento em Brasília, que foi a coalizão pela dignidade menstrual. A coalizão é a junção da maioria dos coletivos do Brasil, que falam sobre a temática da dignidade menstrual.
Então nós fomos para o evento de lançamento da cartilha da coalizão, que é uma cartilha que fala para o governo, nesse caso , o Ministério da Saúde e o Ministério da Mulher, para entregar e apresentar o que a gente pensa sobre o tema da dignidade menstrual, e como que dentro dos ministérios isso poderia ser muito mais tratado.
A gente também foi na Câmara dos Deputados Federais, e a gente teve uma sessão muito longa, mas revigorante, falando também sobre a mesma pauta da dignidade menstrual. E aí, mais recentemente, agora, no final de 2023, nós fomos convidados e convidadas para ir para Manaus, para passar cinco dias em Manaus, fazendo uma jornada criativa sobre a temática da dignidade menstrual.
A macrorregião da Cidade Operária é antirracista, criativa e potente. Nós estamos construindo coisas o tempo inteiro. Estamos vivenciando coisas o tempo inteiro. Inovação, tecnologia, desenvolvimento, tudo. As pessoas só precisam enxergar tudo que está acontecendo aqui. A cidade de São Luís precisa acreditar nas suas periferias. E a gente precisa ter um outro olhar para dentro das nossas periferias, principalmente nós que moramos aqui.
IS: Apesar de o nome do Coletivo ser menina cidadã, há integrantes que já estão na fase adulta e a presença dos meninos também é expressiva. Como se deu a ampliação ?
BM: Chegou um ponto em que nós já estávamos fortalecidas, nós já sabíamos o que a gente podia fazer, mas o meu pai , irmão, namorado, a minha mãe não sabiam. Do que adianta fortalecer meninas, se a gente não está fortalecendo os meninos, se não estamos ensinando o que eles não devem fazer. Então foi uma outra repaginada, sabe? De ok, a gente precisa de meninos no coletivo.
Os meninos precisam estar presentes dentro da mobilização, da articulação. Precisam conhecer tudo isso para que eles estejam também no mesmo par de responsabilidades. Eu sou responsável pela minha proteção, mas ele também é responsável por não cometer racismo, por não cometer homofobia, por não ser homofóbico, por não ser nem cometer nenhum tipo de discriminação contra mulheres, contra LGBTs, contra a comunidade negra.
Um coletivo que agrega, um coletivo que acolhe, um coletivo que está presente e que está junto. Então, isso é uma coisa muito importante para a gente, sabe? De exercer a cidadania, mas além de exercer a minha cidadania motivar a cidadania do outro
E quando se faz a consulta, vamos trocar o nome do coletivo? Os meninos disseram não, a gente se sente representado neste nome, então é uma resposta muito simples e engraçada, mas que é, foi isso, eles não quiserem que mudassem, porque se sentiam parte daquilo, se sentiam representados nesse nome, e assim o nome do coletivo continuou o mesmo.
Isso não impediu que outros meninos fizessem parte, sabe? E eu acho que é isso legal de tudo também, porque demonstra para a gente aquela coisa de que é o que eles querem estar ao nosso lado, mas querem respeitar o nosso lugar de fala dentro dessas atividades.
IS: A violência de gênero é um problema que impacta muito a juventude, inclusive em termos identitários. Como o coletivo tem lidado com as questões relacionadas à comunidade LGBTQIAPN+? Não vimos nenhuma menção às pautas relacionadas a essa comunidade nos documentos formulados pelo coletivo, qual a razão dessa ausência?
BM: Isso foi um ponto de análise há alguns dias. Eu não sei se vocês sabem, mas nós temos muitos menores de idade dentro do coletivo. Eu tenho 24 anos já, tem outras meninas e meninos que estão já dentro da idade adulta, mas temos integrantes na faixa etária de 16, 15, 14, que estão ainda nesse processo de reconhecimento e de construção da sua própria identidade.
E assim, de se entender, se compreender, e que muitas vezes, ainda não disseram para os seus pais. E por que essa temática não é tão abertamente falada? Justamente por conta disso. A gente fala muito sobre proteger e preservar, então a gente precisa proteger e preservar também as pessoas que estão caminhando conosco.
E muito mais do que tudo isso, é respeitar o espaço de cada uma das pessoas. Quando eu falo sobre acolhimento, a gente tem trabalhado muito para que todas as pessoas se sintam parte, para que todas as pessoas se sintam próximas a esse ambiente, consigam se sentir acolhidos e acolhidas, para que se sintam verdadeiramente parte de todo esse processo.
A gente tem trabalhado muito para que a gente se sinta e que as pessoas consigam dizer quem elas são e sem ter que explicar por que elas são. E eu sei que é muito contraditório, como tu diz, a maior parte das pessoas que estão lá fazem parte da comunidade, mas é muito mais importante para a gente preservar de fato a imagem, preservar o espaço dessas pessoas, para que aí então a gente consiga beleza.
Eu já consigo me entender e me reafirmar, eu já consigo dizer para as outras pessoas quem eu sou, então agora eu quero que a gente converse sobre isso em outros espaços. Eu quero que essa seja uma pauta que a gente leve para outros espaços.
IS: Agora, exercitando um pouco de imaginação, como você se vê daqui há 10 anos e como imagina o futuro do coletivo?
BIANKA MELO: 10 anos é muito tempo, mas a gente já está aqui caminhando para os 3 anos de existência. Em 3 anos a gente já conseguiu tudo isso, mas eu vejo uma reformulação. A gente fala muito sobre transição no sentido de que estamos nos formando enquanto líderes e formando outras pessoas.
E essa liderança não é focalizada, ela não é de uma pessoa só. Então, o meu sonho é que a gente continue daqui a 10 anos, que a gente tenha 5 gerações mais ou menos de meninas e meninos que passaram pelo Menina Cidadã e que fizeram diferença na cidade.
Eu sonho com o dia de que outros postos de saúde sejam construídos e que a comunidade consiga de fato acessar os serviços de saúde. E que talvez esse acesso à saúde venha da mobilização de meninos e meninas.
Eu sonho com o dia que outras escolas de nível fundamental 1 e 2 sejam construídas dentro do território da Cidade Operária, porque já faz mais de 20 anos que a gente não tem nenhuma escola sendo construída aqui nesse território.
E é por isso que a gente tem uma demanda tão grande de meninos e meninas nessa faixa etária fora da escola. E eu sonho que o Menina Cidadã esteja lá protestando, e a gente esteja ainda dentro dessa mobilização para dizer que precisamos de mais políticas públicas de qualidade dentro dessa região.
Mas muito mais do que isso, eu sonho com os nossos meninos e nossas meninas fortalecidos, acessando oportunidades dentro do mercado de trabalho, dentro das universidades, tendo oportunidades de fato e ganhando dinheiro.
Nós não precisamos mais sobreviver, nós precisamos viver, nós precisamos existir, nós precisamos ser vistos. E é assim que eu sonho em ver a Menina Cidadã, incidindo sobre políticas públicas, incidindo sobre políticas públicas de qualidade em espaço de lideranças, em espaço de poder, empoderados de fato no sentido literal da palavra.
Eu tenho poder de mudança, eu tenho poder de mobilização e articulação. Então, eu sou eu, eu sou eu, menina cidadã, sabe? Existindo.
Encontrar pessoas que sonhem conosco, não que sonhem igual a gente, mas que sonhem conosco, que respeitem o meu sonhar, mas que tenham também fé no sonhar que elas têm. Porque transformar é muito gigante.
Ter esperança é bom. Mas se é uma coisa que dentro da Fundação e dentro do coletivo a gente fala muito, é sobre esperançar. Isso é uma coisa que a gente aprendeu com o padre Bráulio.
Esperançar significa que eu tenho esperança, mas que eu ágio, que eu faço. É o sentido de ser verbo, que está em movimento. Eu tenho esperança na minha comunidade, mas eu estou em movimento para que a minha comunidade esteja em transformação.
Então, sejam seres em movimentos, sejam pessoas que contribuem dentro da comunidade. Eu não preciso criar um coletivo para que eu esteja incidindo sobre políticas públicas, para que eu seja alguém dentro da minha comunidade.
A transformação se faz a partir das pequenas coisas. A partir daquela pedra que eu tiro, que estava atrapalhando o caminho, ela já é uma grande transformação. E mais uma vez, a revolução é coletiva. E revolucionar é a chave da mudança.